sábado, 29 de janeiro de 2022

CENA 2

(Ao som da música, ainda no escuro, ouve-se a voz em off de Ludo, como se ele tivesse voltado a falar ao microfone.)

LUDO: Quer dizer, quando você une, na obra de arte, e a obra de arte ela tem que ter isso, se não ela não respira, né, mas quando você junta elementos tão díspares, quer dizer, quando você mistura, você abrange, de certa forma, porque se você for parar pra pensar, o que que é o outro, né?, mas quando a arte acontece, eu acho que aí, independente de qualquer outra coisa, ela realiza aquilo pra que ela foi feita, né, e isso, esse, essa que é a grande sacada, né, aí é quando você se ilumina - olha, arrepiei todo.

(A luz se acende enquanto Ludo estende o braço para ninguém.)

HELENA, em off: Nossa, incrível, realmente, a gente está aqui ao vivo com esse artista que transformou o universo da arte, né, e vem se destacando aí cada vez mais no mercado e fora dele, né, e está com cada vez mais seguidores nas redes, e agora está prometendo arrasar aí com uma história de intrigas e romances, né...

(Ludo se agita na cadeira e age como se estivesse em um talk show, mas sua voz continua em off.)

LUDO: Não dá spoiler. (Ri.) É uma tragédia, na verdade, que aconteceu perto da minha casa, uma história real, que mexeu muito comigo, até hoje eu não digeri direito, sabe como é, mexeu com muita coisa e agora, ontem, na verdade, apareceu um casal que estava envolvido na situação, na época, aí… eu revivi, eu… tô revivendo, eu acho, eu preferia…

HELENA, em off: Você diria que enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual, eu por meu lado, aprendendo a ser louco, um maluco total… (a voz de Helena vai desaparecendo em ruídos eletrônicos e de estática, enquanto Ludo congela, olhando para o horizonte. Luz sobre Diogo e Karina.)

DIOGO: Desculpe a gente vir até aqui fazer você se lembrar. A minha mulher tinha esperança de encontrar a… aquela moça, a…

LUDO, não mais em off: Isso me faz lembrar do Tcheckov.

DIOGO: Quem? Não, uma moça… aquela…

LUDO: O Tcheckov uma vez falou que quando uma arma aparece em uma história, ela necessariamente vai ser disparada.

DIOGO: Eu não… como que é?...

LUDO: A gente podia ter evitado.

DIOGO: Não teve nada a ver com o tiro, o que aconteceu…

LUDO: Por que foi mesmo que você veio?

DIOGO: Minha mulher tinha esperança de encontrar a…

KARINA: Eu queria falar com a Helena, ela está aí?

PÂMELA, ao microfone: Alô, alô. Teste.

LUDO: Você insiste nessa história. Eu já disse que não tenho nada a ver com ela.

PÂMELA: Bom, a minha história…

KARINA: Isso está muito mal contado. Foi aqui que ela me trouxe naquele dia.

PÂMELA: Não é de uma forma muito bonita que ela começa, e com certeza o final dela… (Silencia, desanimada.)

KARINA: Aí ela entrou pra pegar um livro e desapareceu, eu vi você saindo e achei… Bom, você sabe o que eu achei.

PÂMELA: O meu amor morreu naquela manhã. Quer dizer, eu já amava o Mano, isso… mas eu nunca teria traído o L. Eu não teria.

KARINA: Como você pode dizer que não sabe de quem eu estou falando? Morando na casa dela?

PÂMELA: Mas o meu amor morreu naquela manhã. Depois do que o L me disse, eu não tinha mais como continuar com ele.

LUDO: Eu sei de quem você está falando. Mas eu não entendo.

PÂMELA: Eu tinha recebido uma proposta. Pra um trabalho. Irrecusável. Mas pro L isso era demais, e pra mim já era demais que isso fosse demais pra ele, entende?

KARINA: Eu é que não entendo, cara. E você não faz questão nenhuma de explicar. Cadê a Helena? Ela morava aqui, foi aqui que ela desapareceu dizendo que ia pegar um livro.

PÂMELA: O Mano era uma vertigem. Ele me apoiava. Não era por ele, pelo menos… Na verdade, as coisas mudaram muito naquela tarde.

KARINA: Responde, cara.

LUDO: Eu não sei quem ela é. Eu…

KARINA: Como assim?

LUDO: Ela me enlouquece. Eu não quero falar sobre nada disso, por que vocês não esquecem?

PÂMELA: Foi uma descoberta.

KARINA: Eu não posso…

LUDO: Já faz um século que isso aconteceu.

KARINA: E daí, onde é que eu encontro ela?

PÂMELA: Um encontro. Comigo mesma. De um jeito que não dá nem pra descrever.

LUDO: Eu… Ela… Só… na minha cabeça.

PÂMELA: Com ele, sim, às vezes até… através dele, quem sabe…

KARINA: Isso é o que, uma poesia? Eu quero um endereço, cara.

PÂMELA: Mas eu. Em mim. Comigo.

LUDO: Escuta. Você pode tentar. Eu… Isso é a morte pra mim.

PÂMELA: E isso foi uma primeira vez, foi maravilhoso. Eu faria tudo outra vez.

KARINA: Tentar o quê? Que morte, do que é que você está falando?

PÂMELA: Eu morreria outra vez?

LUDO: Eu vou falar com ela. Eu… vou tentar. Eu peço pra ela te encontrar na praia. Eu não sei se isso pode dar certo.

PÂMELA: Sim, eu morreria, eu acho. Quantas vezes eu tivesse que morrer.

KARINA: Se ela não aparecer…

DIOGO: Calma…

PÂMELA: Mas por quê?

(Fica luz apenas sobre Diogo e Karina.)

DIOGO: Então… uma hora foi o tempo que eu tive pra tentar impedir que você jogasse fora toda a nossa história por causa de um impulso louco de ir atrás de uma mulher com quem você conversou por alguns minutos há… quantos anos?

KARINA: Eu não sabia explicar, nem pra mim mesma. Eu sempre cuidei tão bem de você.

DIOGO: É, sim.

KARINA: Eu precisava explicar?

DIOGO: Bom, você não estava cuidando muito de mim.

KARINA: Eu precisava?

DIOGO, corrigindo-se: Não estava tomando cuidado. Acho que era uma questão de consideração, talvez. Você acha que tudo bem ser enganado por alguém que diz que me ama, assim, a esse ponto?

(Longo silêncio.)

(Luz sobre Mano.)

MANO: Logo que a gente se conheceu, no Ensino Médio, houve um momento, pra mim e pra ela, em que parecia que a gente tinha sido feito um pro outro, era a coisa mais óbvia do mundo, a gente ia ficar junto e nem fazia sentido que fosse diferente, todo mundo sabia, só faltava acontecer. Aí não aconteceu. Sei lá, de repente a gente se olhou e não era nada daquilo, e no máximo a gente virou amigos, depois, quase nem isso. Mas é que a vida sempre dava um jeito de aproximar a gente de novo, aí a gente estava sempre se reencontrando, se vendo e sabendo da vida um do outro. Eu não sei quem de nós dois mudou mais e mais vezes, mas quando ela foi ficar com esse cara, aquilo era estranho até pra ela, ela devia estar em uma época difícil, sei lá, não dá pra entender. Não dava. Eu já tinha percebido alguma coisa entre nós dois já fazia um tempo, mais cedo ou mais tarde ela ia largar aquele cara e eu sabia que era a minha vez, que era essa a hora, que vai saber por que o mundo deu tantas voltas e a gente deu tantas voltas ao redor do mundo só pra acabar de novo achando que a gente tinha sido feito um pro outro.

(Em silêncio, começam a passar nos telões imagens de guerras e conflitos urbanos envolvendo armas de fogo. Ao longo das falas seguintes, os sons vão começando a surgir e aumentar de volume.)

HELENA: Você esperou…

KARINA: Helena! (Vai abraçá-la.)

HELENA: Por que agora?

KARINA: Eu não sei. Me desculpa, eu só conseguia pensar nela.

L, gritando perto do microfone: Aquela vagabunda!

KARINA: No absurdo de tudo aquilo.

L: Safada! Sem-vergonha!

KARINA: E quando eu pensava em você, eu… era tão confuso.

L: Puta! Vadia!

KARINA: Por que você sumiu, quem é esse homem, o que foi que ele fez com você?

L: Eu vou acabar com a tua vida, sua salafrária!

KARINA: Vem comigo. Vamos embora daqui. Eu posso te levar.

L: Você vai morrer!

(O ruído de guerra e música encobre tudo o que é dito, inclusive a voz de L, que agora grita um pouco mais alto e mais distante do microfone, em fúria, toda sorte de xingamentos. As luzes das cenas se apagam e as imagens e ruídos continuam ainda por um tempo.)

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