CENA 4
(A luz vai se acendendo lentamente sobre a cena tal e qual ela estava antes, com Mano repetindo para Pâmela que não quer perdê-la novamente, quando voltam Ludo, Diogo e L.)
LUDO: Vamos lá, vamos acabar logo com isso.
KARINA: Você! O que você fez com ela?
DIOGO: Depois, Karina!
LUDO: Pode deixar isso pra depois? Pra gente acabar logo com isso?
KARINA: Ela vai me contar tudo.
LUDO: Ótimo. Eu não vejo a hora. Agora é uma outra história que precisa ser contada.
PÂMELA: Então a gente se encontrou aqui.
L: No meio desses idiotas, infelizmente.
KARINA: Ele ainda está armado?!
LUDO: É uma arma cenográfica.
DIOGO: É de mentira. É só pra contar.
L: Me deram esse brinquedinho ridículo.
LUDO: Achei que você tinha entendido o que eu te falei ali…
L: Ah, eu entendi, não precisa viver o personagem, é teatro contemporâneo, isso… Não tem nada a ver com o fato de que agora é você quem está armado.
LUDO: Amigo, você precisa muito pegar um pau, né, uma pedra, gritar uga-uga, ver alguém perdendo sangue - e isso resume a totalidade da sua existência. Faz tempo que eu nem me lembro mais onde que eu perdi aquele pedaço de merda. Vamos logo acabar com isso? Fica longe… você não tem que reviver nada, é a única questão aqui. O que não tem nada a ver é com teatro, é pra vida isso, deixa o impulso, o sentimento, o pensamento negativo passar. Não atua, não interpreta.
PÂMELA: Então… a gente se encontrou aqui.
L: Num culto de autoajuda, aparentemente.
MANO: Eu só cheguei depois, vocês…
KARINA: Vocês conversaram.
PÂMELA: Sim.
(Pausa. Durante o diálogo a seguir, Ludo sai de cena discretamente.)
KARINA: E…?
PÂMELA: Eu não… alguma coisa me afastava dele…
L: Eu devia ter te levado pra casa. Eu queria ter conseguido.
PÂMELA: Nada do que ele dizia tinha alguma coisa a ver comigo.
L: Ela nem escutava mais o que eu dizia. De uma hora pra outra, ela tinha virado outra pessoa.
PÂMELA: Eu mesma. Era uma coisa que eu acho que eu nunca tinha sido de verdade.
L: Vocês superestimam isso ser quem a gente é, que coisa mais infantil...
PÂMELA: Vocês quem?
KARINA: Você é de um grupo que com certeza se beneficia se alguém de outro grupo abrir mão de ser quem é.
L: Está vendo? Um grupo, outro grupo… A gente é tudo humano igual, pra que ficar inventando coisa que separa a gente?
KARINA: É… e se beneficia ainda mais se alguém cair nesse discursinho hipócrita e conveniente justo agora - você não estava se achando muito igual a todo mundo quando estava com uma arma de verdade na mão.
L, fingindo-se entediado: Quando que a gente ia acabar logo com isso, mesmo?
HELENA, casual, ao microfone: Oi, com licença? Com licença, eu preciso interromper. Desculpa, é um minutinho só. A gente vai precisar parar um pouco pra preparar a próxima cena… Eu quero pedir desculpa, é uma cena muito perigosa, aconselho vocês a não tentarem fazer isso em casa, mas também não se preocupem, nós somos treinados e preparados pra isso, e além do que esse tipo de mecanismo que a gente vai usar aqui, ele praticamente nasceu junto com o teatro… teatro ocidental, né, na Grécia Antiga… os gregos, quando inventaram o teatro, já inventaram junto esses... efeitos especiais, né, então… se chamava deus ex-machina, é um mecanismo simples, a princípio, sem grandes mistérios… imagina, era usado, isso, uns quinhentos anos antes de Cristo, eles estavam fazendo lá…
L: Meu Deus, você fez uma apresentação em PowerPoint pra gente? Eu vou dormir…
HELENA: Eu fiz, na verdade. (Começa a projetar slides.) Aqui vocês podem ver as ruínas de um teatro grego, em formato de arena, é o padrão, construído na encosta da montanha de modo a facilitar a acústica… O espaço no centro era do Coro, que estava lá… meio que narrando e ao mesmo tempo… de certa forma representando também a voz do povo, então às vezes do Coro surgiam umas falas que comentavam os acontecimentos da peça. E as pessoas iam aí passar dias inteiros assistindo histórias que elas já conheciam, mas contadas de um jeito que sempre buscava refletir as questões sociais, políticas e espirituais próprias do tempo e da sociedade delas.
DIOGO: Aquelas tragédias, né? "Ser ou não ser", coisas assim.
HELENA: É… Não! Como assim, "ser ou não ser" é Hamlet, muito depois…
DIOGO: Vinícius de Moraes?
HELENA: Como é, estão prontos aí?
PÂMELA, rindo: No momento em que eu me afastei dele, eu tive uma sensação que eu nunca tinha experimentado.
HELENA: Era uma grande e fascinante terapia coletiva e social de um jeito que nunca tinha existido antes nem voltaria a existir depois.
PÂMELA: Uma liberdade absoluta. Uma leveza extraordinária, alguma coisa… borbulhava dentro de mim… mas era delicado e… quente.
HELENA: Milênios antes da primeira tela verde… Muito antes de alguém sequer imaginar tecnologias como o CGI e personagens virtuais contracenando com atores verdadeiros.
PÂMELA: Não existe linguagem capaz de expressar isso… Uma plenitude tão grande… Como é possível que eu nem sequer tenha ficado surpresa quando os meus pés se desprenderam do chão. (Começa a flutuar.)
HELENA: O milagre da arte. O poder absoluto de transformação da realidade.
PÂMELA, flutuando cada vez mais alto: Até pelo contrário, de repente eu não conseguia mais entender por que passamos a vida inteira no chão… arrastando o nosso peso.
MANO: Quando eu cheguei, você já estava aí no alto… Um anjo, a imagem da perfeição.
PÂMELA: Nada podia me alcançar aqui. Nada nunca mais ia me machucar.
MANO: Uma confirmação de que você é divina, só pode. Enviada pelo céu, ou qualquer coisa assim.
PÂMELA: Nada vai me machucar dessa vez. Eu estou voando!
MANO: Mesmo que nada disso exista.
PÂMELA: Eu quero voar pra sempre, eu vou voar…
MANO: Mesmo que isso fosse completamente impossível.
PÂMELA: Eu estou voando!
(L dispara para o alto e Pâmela despenca. Ouve-se um grito nos autofalantes. A luz se apaga assim que Pâmela atinge o chão, permanecendo apenas um foco sobre Helena, que segura um aparelho de som ligado diante do microfone, com o grito ainda soando. Até que, de repente, silêncio e escuridão completa.)
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