sábado, 2 de julho de 2022

CENA 5

(Os telões começam a exibir gravações da queda feitas de vários ângulos, simulações, etc., e as imagens são aceleradas para a frente e para trás como se estivessem no ecrã de um investigador que as analisasse. Em dado momento, acende-se um foco sobre o microfone onde antes estava Helena, e agora não há ninguém, e um foco sobre Mano, que está em outro palco. Quando a fala seguinte começa, surgem nos telões imagens de Helena, exatamente diante daquele microfone e com aquele foco, como se fossem imagens ao vivo. Todas as falas de Helena no início desta cena são com ela aparecendo apenas em vídeo, enquanto o espaço real diante do microfone permanece iluminado e vazio.)

MANO e HELENA: A perícia confirmou que a causa da morte havia sido a queda de uma altura elevada, mas como ninguém sabia explicar de uma forma crível como a Pâmela tinha ido parar em uma altura elevada, as investigações começaram e todos ficaram sabendo sobre o tiro. O que não mudou nada, porque nunca houve absolutamente nada de concreto contra o ex-marido dela, mas ainda assim…

MANO: Eu passei muito tempo remoendo ódio e desejo de vingança.

HELENA: O cara resolveu desaparecer por uns tempos.

MANO: Eu queria fazer mal pra ele, eu achava que isso seria justiça.

HELENA: Sabe como é, a mídia ficou em cima e ele tinha um patrimônio a zelar.

MANO e HELENA: Eu estive próximo de enlouquecer. Só se falava naquele mistério, em todos os jornais, os jornalistas vinham bater na minha porta.

MANO: E eu quis morrer também.

HELENA: Eu não sabia o que dizer, aquilo ia contra tudo que eu sempre tive como certo.

MANO e HELENA: E então eu me afastei também. De tudo. Dar um tempo pra cabeça.

HELENA: Sumir.

MANO: Desaparecer.

(Blecaute. Silêncio.)

L, em off: Bom, primeiro que o teatro morreu já no final do século passado, né, bem antes da internet ser o que ela é hoje, e os serviços de streaming, né, já não tinha mais espaço. Aí tem gente que nem dá pra chamar de teatro o que elas fazem, né, porque o que é aquilo? Teatro interativo, tem uma coisa que eu tenho horror é esse teatro interativo, (a luz começa a se acender sobre ele, que está diante do microfone, fazendo pose, mas a voz permanece em off) se eu vou no teatro, eu quero assistir uma peça, eu não quero participar de um evento. Eu tenho horror de ter que falar, eu sou plateia, não me pergunte, não sou eu quem tem que saber. Não quero ver putaria, também, homem pelado, beijo gay, por que sempre tem que ter um beijo gay? A gente vai no teatro pra ficar se estressando, eu não quero ter que pensar, eu já pensei o dia todo, eu quero…

LUDO, também em off: Quando foi a última vez que você foi ao teatro?

L: Oi? Você pode repetir a pergunta?

LUDO: A última vez que você foi ao teatro.

L: Eu… Sim, foi a última. Mas a questão é que é isso, né, o que é o teatro hoje em dia? Ninguém vai sair de casa pra ver homem pelado, beijo gay, putaria! Ainda chamar isso de arte? Arte é o Beethoven, Michelangelo… É uma coisa de museu, né? (Durante o discurso, sua voz vai diminuindo de volume até sumir, acompanhando o apagar das luzes.)

(Pausa.)

(Luz sobre Diogo e Karina.)

KARINA: Eu via tanta força em você. E onde eu não via, eu achava que era exatamente naquilo que eu trazia pra tua vida. Quer dizer, se eu já acreditava em você, em você comigo, então, como que alguma coisa poderia dar errado? (Pausa breve.) Se você não estivesse comigo naquele dia, eu… (Estremece.) Eu não gosto de ser cuidada, é, você sabe, eu quero dizer que não é uma coisa que acontece muito, eu não gosto de me sentir vulnerável, não… Eu não fico me demorando nessas coisas, foram poucas as vezes na minha vida que eu precisei ser cuidada ou… pior que isso, até… dá pra contar nos dedos as pessoas que estiveram lá pra isso e souberam fazer tão bem. (Pausa.) Eu levei todos esses anos, ainda… pra entender… pra aceitar a força do sentimento que eu tinha tido naquele dia por outra mulher. Mas era mais do que isso, era aquela morte absurda e sem sentido, e era eu, uma parte minha que eu não queria ser, mas que estava lá, e era você me cuidando e foi você me cuidando durante muito tempo até eu entender que é mesmo, alguém precisava cuidar de mim. Eu sempre fui tão boa em cuidar dos outros. Eu tinha que fazer alguma coisa por mim. (Pausa.) Eu via o orgulho no teu olho. Quando eu voltei com tudo pro trabalho, e pras aulas de piano, e ia toda semana pra cidade encontrar alguém, ouvir outras histórias, pensar em outros assuntos… (Pausa breve.) A primeira vez que eu ouvi a voz da Pâmela, a gente estava no cinema, a gente tinha ido ver o… um filme grego? Eu nunca te contei. Eu achava que era ela, ela falou alguma coisa de um milagre e eu me lembrei, um milagre, a gente… quantas vezes a gente falou sobre isso? Uma mulher saiu voando. Ela só… Eu, não, eu me recuso a dar qualquer significado pra isso, um milagre?! Não. Foi um assassinato. Eu não queria voltar a esse assunto, ele já estava encerrado pra mim. Então veio a Helena. E eu ainda não queria contar nada pra você, mas aquilo foi ficando cada vez mais frequente e mais intenso e de repente eu já não tinha mais como aguentar. Eu não podia continuar vivendo aquilo. Eu não sabia por que, eu ainda não sei… E aí eu trouxe você pro meio disso tudo. De volta pro meio disso tudo. E eu percebo o quanto isso te machuca e eu me odeio… mais. Não sei nem como te dizer isso. Como eu lamento. Quanto eu queria que fosse diferente.

(Pausa. Foco sobre o microfone. Pâmela vem caminhando até ele, abre a boca para falar, desiste. Pensa um pouco, toma coragem e quando abre a boca, desiste outra vez. O foco se apaga. A luz sobre Karina e Diogo muda e ela agora passa a falar se dirigindo ao público.)

KARINA: Como é que eu poderia esperar que ele me dissesse qualquer coisa depois de ouvir isso? O problema da vida é que não dá pra editar aquilo que a gente está dizendo, as coisas vão vindo e ficam lá pra sempre, DITAS, não importa se verdadeiras, completas, justas, bem colocadas, aquelas são as palavras DITAS. Por isso que o celular veio substituir a interação humana, porque ele te dá essa possibilidade de olhar bem praquilo que você está dizendo e dizer, não, pera, deixa eu apagar tudo. Não tinha mais como começar de novo. Faltou dizer que eu amava ele a um ponto que a gente estava misturado e eu não sabia mais o que era fazer algo por mim ou por ele, se o pensamento era meu ou dele, se a pessoa no espelho, se as meias… A verdade… é que eu jamais me permitiria viver nada com qualquer outra pessoa enquanto estivesse com ele. E que eu não ia suportar deixar ele, que isso não ia acontecer. Não ia. Como que eu pude deixar de dizer isso? Eu amava Helena, eu amo. Eu desejava Helena, eu enxergava só isso. Como que eu pude enxergar só isso? Em minha defesa, eu acho… ou quero acreditar, não sei… não, eu acho, sinceramente eu acho que esse era o desenvolvimento lógico do meu discurso, que era nisso mesmo que eu ia chegar, que as minhas próximas palavras pra ele seriam exatamente essas que eu falei pra vocês, que eu amava ele e que não tinha nada com que se preocupar apesar de tudo e por mais… bêbada boba burra apaixonada que eu pudesse estar, ainda era eu por trás de tudo aquilo. Porque era eu por trás de tudo aquilo.

LUDO, aparecendo de repente, visivelmente bêbado: Ah, vocês estão aqui! Amores da minha vida. Eu procurei vocês por todo o teatro. Praia. Por toda essa praia. Claro, isso ali é um coqueiro.

KARINA: Eu acho que era isso que eu teria dito.

LUDO: Ei! Oi! Sou eu aqui! Olha… Eu queria, eu estava procurando vocês, eu acho. Eu estava procurando por mim mesmo. (Ri.) Eu queria contar toda a verdade… Eu falei pra você que eu ia contar toda a verdade. Meu amor.

KARINA: Eu… o quê?

DIOGO: É, amigão, acho que por hoje já chega de grandes verdades.

LUDO: Não, eu preciso. Eu faço questão. Não é qualquer pessoa que sabe.

DIOGO: Amanhã, vai ser melhor.

LUDO: Não sei se existe amanhã.

KARINA: A Helena é quem vai me contar tudo. Você…

LUDO: Eu sou Helena, é isso que eu queria te contar! Que eu precisava...

(Silêncio.)

DIOGO: Eu vou acompanhar ele até em casa.

LUDO: Meu amor… é verdade.

DIOGO: Deu, amigo. Agora já chega.

(Diogo vai em direção a Ludo para pegá-lo quando as luzes se apagam. Música.)

(Luz fraca sobre o caminho de Diogo , enquanto ele tenta levar para casa uma Helena relutante e visivelmente embriagada. Logo depois, blecaute. A música não para.)

(Luz em um dos palcos, onde Diogo coloca Ludo em uma cama e o ajeita para dormir. Ele já parece estar desacordado. Blecaute.)

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