CENA 7
(Mudança brusca de luz.)
L: Parou! Acabou, eu não vou fazer parte disso! O que é isso, é uma novelinha espírita? É pra eu perdoar a minha mulher adúltera e o amante dela? Aliás, no espiritismo, isso que você está fazendo não é obsessão? Patéticos, vocês dois. Você queria o quê? Hem? Não, me diz, eu vou te dar a chance de mostrar o brilhantismo dessa tua cabeça cheia de merda. Você me trouxe aqui pra ver você se reencontrando com a minha mulher e o quê, daí, vivendo feliz pra sempre com ela, que nem o Gasparzinho? Falando em milagre?! Agora você quer o quê, ser canonizada? A padroeira das putas adúlteras? Você pode? Já não tem alguém ocupando esse posto? Tenho certeza de que candidata é que não falta…
HELENA: Existe um mundo… quase não é outro mundo, é meio que um avesso deste. Existe um mundo por trás deste mundo que é onde as coisas deste mundo são tecidas. Não, espera, eu preciso. Você tem que saber. É agora, é quando as coisas são decididas, é onde começa o movimento. Eu sempre procurei saber, eu queria entender até onde eu podia realmente decidir e controlar quem eu era, e até onde era só um resultado, um produto, a marionete do instinto ou de um padrão social. Você não sabe. Você está vendo um quadro muito pequeno aqui, é uma escolha, eu não sei do que você está se protegendo, mas essas máscaras, esses personagens todos… Estereótipos de homens e mulheres, de como um homem deve ser, ou um casal, ou o que significa uma mulher se sentir livre o bastante pra decidir com quem ela quer viver, o que ela quer fazer da vida… É essa a sua peça, é por isso que você está esperneando tanto, uma cena em que não aparece nada de um ser humano, só rótulos?
(Em algum momento ao longo das falas seguintes, Helena se transforma em Ludo.)
DIOGO: Eu entendi, Karina. Eu me apaixonei por essa mulher tanto quanto você. Até mais, se você pensar que o Ludo… mas eu entendi. Mais, eu nem sei explicar. É como se eu pudesse ser o próximo a sair flutuando, eu sinto como se eu pudesse voar.
PÂMELA: Eu não espero que você me perdoe. Eu tive que me perdoar por tanta coisa.
DIOGO: Eu me libertei de tanta coisa. E foi uma coisa que você me falou que me fez ver.
PÂMELA: Isso é o que é. Não tem um porquê, você não pergunta o porquê de uma rosa.
DIOGO: Eu queria resolver tudo. Os teus problemas, os meus, os de todo mundo aqui.
PÂMELA: Eu só existo enquanto vocês estão todos juntos.
DIOGO: Achar uma solução que favorecesse todo mundo.
PÂMELA: Se eu pudesse escolher, também seria diferente. Eu nunca quis machucar você.
DIOGO: Eu nunca me importei de ter que me machucar por isso.
PÂMELA: Isso não tinha nada a ver com você, nunca foi sobre atingir você ou fazer qualquer coisa pra te machucar.
DIOGO: E sempre acabei me machucando por isso.
PÂMELA: Não, não fale agora, eu preciso terminar.
DIOGO: Mas isso pode acabar, hoje, aqui. Isso pode dar certo, Karina.
PÂMELA: Isso não vai dar certo. Eu não vim aqui pensando que ia dar certo. Muitas coisas vão acabar, hoje, aqui, e outras que já tinham acabado muito antes não vão voltar a ser. Mas também alguma coisa está nascendo, não pra você, você só enxerga a morte. E então você não vai voltar a me ver, e não por isso, mas você também não vai voltar a enxergar nenhuma luz. Eu não posso lamentar por você, eu não espero que você compreenda a imensa dor que eu sinto.
LUDO: Eu não espero que você compreenda a imensa dor que eu sinto.
PÂMELA: A vida… foi esse sopro.
LUDO: Eu sempre soube que você era incapaz de sentir qualquer coisa por mim.
PÂMELA: E eu passei muito tempo tentando ser pessoas que eu não era.
LUDO: Que você só era capaz de amar metade de mim, e que isso não seria suficiente.
PÂMELA: Tentando viver do sentido que outras pessoas davam pra vida, porque o sentido que eu dava era...
LUDO: Eu queria poder ser só a parte que você gosta.
PÂMELA: Nunca era bom o bastante. Ou não era nenhum.
LUDO: E é engraçado, mas hoje, por causa de você, do Diogo, por causa disso tudo, hoje eu me sinto mais inteiro do que nunca.
PÂMELA: Agora tem uma coisa que ninguém nunca vai poder tirar de mim.
LUDO: E você me fez ver, viver, sentir coisas que nunca ninguém tinha trazido pra mim.
PÂMELA: O brilho do meu último instante. Um voo. O meu coração transbordando.
LUDO: É como se só agora eu nascesse. É incrível como isso pode ser só um clichê pra quem ouve e, pra quem vive, parecer a mais complexa, imprevisível e profunda realidade. É como se eu visse pela primeira vez. Não existe nada mais no mundo que eu queira tanto ver. O meu amor por você, pelo Diogo, isso me transformou de um jeito que eu achava que já não fosse possível. Eu não quero, é uma crueldade que isso acabe agora. E eu sei que eu vou passar o resto da vida me perguntando como seria se agora você olhasse pra mim e dissesse que vai me dar uma chance.
KARINA: Não existe a menor chance disso acontecer. Eu odeio um pouco isso. Quer dizer, odeio que não exista a menor chance, mas… Eu me enganei, isso é horrível. Talvez eu passe o resto da vida me torturando por isso. Eu não posso colocar um outro coração no lugar do meu pra não despedaçar o teu, o da Helena, o do Diogo. E aí não tem como não despedaçar o meu junto. Eu estou cansada de ser uma cretina e ter o coração despedaçado. De não ser uma cretina e ter o coração despedaçado. Eu estou cansada, basicamente, de ter o coração despedaçado, mas eu também não quero ser uma cretina ou ver pessoas que eu gosto sofrendo por causa de caras como esse aí que já superaram todos os graus mais elevados da completa cretinice. Então eu penso em ficar. Não, eu sinto que quero ficar, eu não penso. Quando eu penso, eu sei que esse cara nunca vai aceitar uma situação como esta. Eu ficaria aqui, sim, eu ficaria. Não com você, mas aqui. Eu quero ficar. E o meu coração transborda e dói.
MANO: E o meu coração transborda e dói.
PÂMELA: E o meu.
DIOGO: O meu, também.
(Ludo levanta a mão. Em algum momento ao longo das falas seguintes, discretamente, ele desaparece.)
L: Vocês são ridículos.
MANO: Sempre achei que fazer ciência é o mesmo que fazer poesia. Com números, sim, bastante, mas com palavras mesmo, o conhecimento, a maior parte dele, não, todo ele, é só um arranjo de palavras, é igual poesia. Pra explicar a verdade, mas poesia. Ah, eu também entendo que a poesia é pra explicar a verdade, então… Verdade, eu vejo você viva, exatamente como naquele dia, e logo você vai ser mais uma vez arrancada de mim por causa da poesia que um idiota escolheu pra explicar uma verdade que é só a verdade, esta, a de que você está aqui e de que nós nos amamos. E aí você não vai ficar. (Pausa breve.) Você só veio se despedir? Eu teria ido até o inferno. Eu vou até o inferno pra me despedir de novo, eu nunca mais quero sair de perto de você. Poesia, verdade. Você veio pra me fazer lembrar de que eu ainda estou vivo? Eu nem precisava estar. (Pausa.) Eu nem reparei que eu estava. E aí eu acabei ferindo alguém enquanto trazia você de volta. Foi uma distração, é horrível, a gente devia ser incapaz de se distrair das pessoas que a gente ama. Eu falei demais. Eu deixei passar uns detalhes, não consegui enxergar fora do meu contexto. Eu achei… pensei que o milagre fosse uma coisa pessoal, porque era, mas… Você veio me mostrar o tanto de milagres que tem no mundo?
L: Milagres?
MANO: Você não veio por nenhum motivo.
L: Como assim, de que milagres você está falando?
MANO: Você só está aqui.
L: Eu estou vendo um milagre só, bem pessoal, inclusive.
MANO: E eu só te amo, Pâmela, a verdade é essa.
L: Tem mais algum milagre acontecendo que eu não saiba?
MANO: Já é poesia demais acontecendo.
L: De que outro milagre você está falando?
(Foco sobre Helena, no mesmo local em que apareceu Pâmela no final da última cena. Quando ela fala, Ludo fala o mesmo que ela, ao mesmo tempo, mas de algum lugar invisível ao público.)
HELENA: De mim, é claro.
(Música. Helena caminha até o microfone como se estivesse sendo transmitida "ao vivo" em todos os telões, mas o que eles mostram é Ludo caminhando até o microfone. As luzes piscam de maneira dramática. Foco sobre Helena quando ela para diante do microfone. Mais uma vez, Ludo diz as mesmas palavras ao mesmo tempo, mas apenas transmitido nos telões.)
HELENA, ao microfone: Quantas vezes eu vou ter que te lembrar?
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