sábado, 14 de janeiro de 2023

CENA 8

(A luz pisca e Helena se transforma em Ludo. Então é ele quem começa a cena falando ao microfone no palco, enquanto os telões passam a mostrar Helena, que vai dizendo o mesmo que ele, palavra por palavra. Durante toda a fala, os dois se alternam tanto no palco quanto nos telões, nunca estando nos dois lugares ao mesmo tempo ou aparecendo juntos no mesmo lugar.)

HELENA e LUDO: Tem uma coisa que eu venho tentando dizer já faz um tempo, mas nunca é o momento… E sinceramente, eu nem tinha tanta convicção do que eu vou dizer quanto estou tendo agora. Eu ia compartilhar uma suspeita, agora eu posso comunicar um fato, essa é a diferença. Eu não sei se algum de vocês se lembra exatamente de quem estava na praia no dia em que a Pâmela morreu, se era Helena ou Ludo, mas o fato é que eu me lembro tanto como Helena quanto como Ludo. Sabe, na primeira vez que eu ouvi falar sobre essa outra personalidade minha, se é que eu posso chamar assim, eu achei que estavam tentando me pregar uma peça, eu não acreditei, eu passei anos não acreditando. Eu no máximo aceitava a possibilidade de eu ser outra pessoa além de mim como uma doença mental, dupla personalidade, sei lá, só eu era eu, sabe, o outro era a doença. Nenhum de nós dois é uma doença. Eu não sou uma doença mental, eu tenho uma forma física, eu existo, eu sou real. Quando o Mano apareceu com a ideia de reunir todo mundo pra trazer a Pâmela de volta, eu achei que eu também tivesse uma chance. O Diogo e a Karina conseguem unir as minhas duas consciências através de alguns sentimentos e lembranças vagas, mas a força dessa reunião de todos nós é inacreditável. Eu quase nem consigo perceber que existe uma diferença. Com todos aqui, eu sou uma pessoa só. Eu consigo ser ao mesmo tempo as duas pessoas que eu sou. Só com vocês todos aqui isso acontece. O que é que poderia explicar uma coisa dessas?

(Todas as luzes se apagam, exceto as que iluminam L, que aplaude ironicamente.)

L: Não, eu imagino que isso deve ter sido muito importante, mesmo. Pra quem se importa.

(Blecaute. Luz sobre Diogo.)

DIOGO: Então ele disse não. Como todo mundo esperava.

(Blecaute. Luz sobre L.)

L: Se a proposta de negócio que me trouxe até aqui fosse um show de horrores, com certeza isso teria me convencido.

(Blecaute. Luz sobre Diogo.)

DIOGO: Eu não sei o que dizer. Eu queria poder contar outra história.

(Blecaute. Luz sobre Mano e Pâmela.)

PÂMELA: A gente não tem muito tempo.

MANO: A gente nunca teve. (Ela pega na mão dele.) A gente sempre teve todo o tempo do mundo.

PÂMELA: Você precisa deixar isso pra trás.

MANO: Não. Não faça isso. Pra quê, então, isso tudo? Não pode acontecer outro milagre? Ele não pode entender?

PÂMELA: Você sabe que não.

MANO: Então como que isso é um milagre? É uma piada de uma consciência superior? Superior como?

PÂMELA: Não é assim, você está com raiva.

MANO: É claro que eu estou com raiva.

PÂMELA: E é com isso que você vai usar os nossos últimos minutos?

(Silêncio. Ele a abraça. Blecaute. Luz sobre Karina e Helena, que estão abraçadas. Depois de um instante, Karina se afasta.)

KARINA: Eu queria poder contar outra história.

HELENA: Sim, eu gostaria de poder ser parte dessa história.

KARINA: Mesmo agora, eu teria ficado por você.

(Blecaute. A luz volta a se acender exatamente no mesmo lugar, mas agora Ludo está no lugar de Helena.)

KARINA: Eu teria ficado, apesar de você. Quer dizer, apesar dessa história toda. Desculpa, eu estou sendo uma idiota.

LUDO: Não se preocupe, não tem como você me deixar de coração mais partido.

KARINA: Eu quero dizer que eu teria ficado também por você e pela Helena… se ia mesmo ajudar nessa… coisa.

(Blecaute. A luz volta a se acender exatamente no mesmo lugar, mas agora Diogo está no lugar de Karina.)

DIOGO: Eu vou ficar. Eu vou ficar com você, não importa o que aconteça.

(Blecaute. Mais uma vez, a luz se acende no mesmo lugar, mas agora, além de Diogo e Ludo, L também está ali.)

DIOGO: Então você não vai ficar? Não importa o que aconteça? Pode descer o próprio anjo Gabriel com uma espada de fogo ou sei lá o que os anjos andam usando nesses dias, você vai continuar se recusando a fazer isso.

L: Bom, não dá pra dizer que desceu um anjo…

LUDO: É, você acha que dá pra dizer com toda a certeza que não desceu nenhum.

L: Eu… não adianta discutir com vocês, vocês são cegos. E agora acho até que já teve um beijo gay por aí e eu nem estava sabendo. Quer dizer, obviamente eu soube antes mesmo de vocês, mas… Nada contra, eu só… tenho nojo… de gente como vocês.

LUDO: É, espantoso mesmo que você seja capaz de sensações humanas, só não sei por que você só faz questão de compartilhar essas.

(A luz se amplia um pouco para incluir Karina. Em algum momento durante as próximas falas, Ludo se transforma em Helena.)

KARINA: Um milagre seria a chance de ganhar muito dinheiro sem nenhum esforço. Sem nenhum esforço, sim, aí você veio correndo pra cá, não foi? O vagabundo. Que nunca vai largar o discurso de que tudo na vida é uma questão de esforço, dedicação e… mérito, não é? Nada além disso. Trabalho, produção, obediência, qual é o valor de um homem pra você? Qual é o valor de uma vida? Você se importa com alguma além da sua mesma?

L: Claro, sim, claro, você tem toda a razão. Você precisa que eu seja um monstro, eu vou ser um monstro pra você. Aí você dorme com a consciência tranquila por ser uma puta amiga de uma puta.

DIOGO: Você só pensa em puta, cara? Só fala em puta, é tudo puta pra você? Isso é uma ofensa, você é obcecado, qualquer mulher que tenha um mínimo de prazer no sexo ou esteja em paz com a própria sexualidade é puta?

L: Mas puta que o pariu, caralho, vocês são muito chatos.

DIOGO: E você é incapaz de amar.

L: "Incapaz de amar"...

KARINA: Você matou a Pâmela.

DIOGO: Matou.

HELENA: Você matou.

L: Eu amava a Pâmela. O amor de dez mil de vocês somado não seria maior que o meu amor por ela.

HELENA: Você… acabou de citar Hamlet?...

KARINA: Quem se importa?!

HELENA: Não, sério, quais são as chances? Um chimpanzé batendo na máquina de escrever acabou de escrever uma fala do Hamlet.

L: Eu quero que o Hamlet se foda, ele morreu o quê, faz quinhentos anos, já…

KARINA: Mas e daí que é Hamlet, o cara sempre vai ser o diabo citando alguma escritura. Amava a Pâmela? Amava?

(A luz se amplia um pouco para incluir Mano e Helena.)

PÂMELA: Me amava?!

MANO: "Amava"...

PÂMELA: Eu não sei o que você chama de amor, mas aquilo não era amor em lugar nenhum do mundo.

DIOGO: Não é isso que é o amor.

L: Ah, vocês sabem tudo, só vocês que sabem. Eu não vou ficar aqui nem mais um minuto, eu nunca mais vou voltar, vocês nunca mais vão ouvir… vocês vão ficar ouvindo falar de mim pelo resto da vida e eu vou esquecer que vocês existem, seus perdedores de merda.

KARINA: Claro, é muito amor pra dividir com o mundo… Transborda amor, é uma fonte luminosa de amor, olha lá.

(L sai e todos ficam se entreolhando em silêncio por um tempo, até que as luzes finalmente se apagam.)

(Música.)

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