sábado, 14 de maio de 2016

O professor falava do Acaso como método de criação artística. Falava de conexões intuitivas entre os atores-dançarinos; trocas que aconteciam naturalmente, independentes da intenção de dar e receber algo. No exercício daquela noite, nossos olhos eram vendados e devíamos deixar o corpo se mover por vontade própria, o mais livre possível das decisões conscientes. Músicas variadas se alternavam, e aos poucos o professor distribuía objetos entre nós, deixando-os ao nosso alcance para que interagíssemos com eles da maneira que o corpo escolhesse. Era assim como uma escrita automática em que as palavras eram os gestos.

Metade da turma realizava o exercício de cada vez, enquanto a outra metade observava. Poucos de nós deram importância ao fato de que Bernardo e Jéssica ficaram juntos para o segundo grupo – eles costumavam ignorar um ao outro, simplesmente, mas tinham brigado feio naquela tarde, por um motivo bobo de que já nem me lembro. De olhos vendados, cada um em um canto da sala, pareciam confortáveis em seus corpos-mundos isolados, movendo-se de maneiras tão diferentes quanto pareciam ser as suas almas, ou caráteres, ou como queira se chamar essa porção abstrata da identidade mais profunda de cada um.

Muitos perceberam quando os dois abriram os braços ao mesmo tempo. Alguns de nós sorriram com a coincidência, trocando olhares cúmplices: então lá estavam Jéssica e Bernardo, inimigos declarados, parecendo pedir abraço, cada um desde sua ilha – e isso já seria suficiente para ilustrar a ideia de Acaso-Criativo ou conexão intuitiva. Mas era só o começo. Todos prendemos o fôlego quando eles começaram a caminhar exatamente na direção um do outro, traçando uma linha reta ao longo de toda a sala, devagar, tomando cuidado para não tropeçar em nada e à procura do que fosse.

A menos de um passo de se alcançarem, no meio da sala, pararam. E ficaram assim por pelo menos um minuto, sentindo, certamente, o calor da proximidade, espelho um do outro, irradiação de desejo e espera, oferta de abrigo, irmandade, reconciliação, até que finalmente

Um comentário:

Anônimo disse...

Todo céu tem o seu inferno...