sábado, 30 de dezembro de 2017


Qualquer impulso que não nascesse da raiva e que fosse realmente desinteressado, uma fraternidade natural, qualquer vontade de viver que preenchesse o gesto, não uma cegueira que desconhecesse as trevas mas o sol de cada um, do mais profundo altruísmo, da mais sincera empatia, qualquer brisa que esfriasse os ciúmes e rancores, qualquer entrega que valesse o céu, qualquer céu, qualquer, qualquer bondade.


sexta-feira, 22 de dezembro de 2017



Lá se vão, um por um. Com suas palavras como roupas gastas, cães de guarda de rancores e mágoas e raivas cultivadas como frutos negros de que me servi durante toda a vida. Lá se vão as razões e a lógica impecável do meu jogo de xadrez interno; lá se vai minha cobiça, lá se vão meus medos – lá se vão, um por um, os elos da corrente em que me mantive atado por um misto de vaidade e incompreensão.

Deus vive em mim. Nada no Universo descansa enquanto não tiver regressado à pureza com que foi gerado; e tudo descansa, porque é puro: o movimento é ilusório, e só a ilusão se move. Assim, no que não pode ser dito, escrevo. Assim, no que pretendo alcançar, espero.

Deus vive em mim. Guardado no coração que Ele guarda, luminoso e, como fonte de luz, completamente alheio à sombra que produzo. Mas eu, que sou luz, por que não vejo? Eu, que vivo em Deus, por que me interponho em seu caminho?

Aos poucos, lá se vão as perguntas para o silêncio eterno e acolhedor que responde: Eu sempre estive aqui.

Aos poucos, sem que eu precise remar, mas porque remo, o mar me conduz à praia desejada em que sempre estive.

Aos poucos, em paz, dissolvo a tormenta, bebo-a e desperto mais forte – sabendo que a tormenta era eu, e a paz, e a boca que bebia, e o tempo de cada uma dessas coisas ter sido o que foi.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017


A neve nas montanhas parecia chantilly – e eu devia estar de bom humor pra pensar isso. Nunca soube muito bem como fui parar naquele carro com Modesto e Virgínia, mais a filha adolescente dos dois, Mica, e o namoradinho dela, Fabián. Saímos de Mendoza antes do sol nascer, com destino ao Aconcágua, ou o mais próximo que podíamos chegar dele pela estrada. Agora estávamos em um hotel pro café da manhã. Uma confusão de turistas em longas filas por umas poucas media-lunas: ouvi dizer que o Brad Pitt se hospedou naquele hotel quando esteve por lá filmando Sete Anos no Tibete, e achei engraçado que a informação ainda corresse e pudesse servir como atrativo turístico. Engraçado e triste, e engraçado. Na verdade, o meu humor estava começando a decair com toda aquela agitação e café morno. Foi quando a minha atenção foi capturada pelo olhar que uma mulher lançava ao companheiro a umas poucas mesas de nós. Alheio a todas as conversas, abri um caderno e escrevi:

Se um dia você olhasse pra mim do jeito que olha pra ele eu moveria montanhas.

Virgínia quis saber o que eu estava escrevendo e respondi que era poesia. Anotei mais umas poucas frases antes que Modesto decidisse que era hora de seguir viagem. Agora estou reconhecendo que eu perdi. Um misto de sono, a excitação com as paisagens novas e a melancolia crônica não me deixavam ver que o clima entre Fabián e Mica não estava dos melhores. Mas talvez eu tenha sido tocado por isso, de alguma forma, e continuei escrevendo aquele poema na minha cabeça, no carro, enquanto os outros tentavam conversar comigo. Mais tarde, aproveitei uma parada breve que fizemos em uma estação de esqui pra anotar as frases novas no caderno.

Não vai servir pra nada o teu olhar de “eu não queria machucar você”. A verdade é que não importa o quanto seja deslumbrante uma paisagem: quando o coração está ferido, a dor é tudo que se pode ver. Fabián e Mica tiveram sua primeira discussão na estação de esqui, e me lembrei vagamente de Modesto me dizer que eles tinham vindo de Tucumán a Mendoza justamente pra que a menina visitasse o namorado. Quando voltamos ao carro, o silêncio começava a pesar – ainda não muito, é verdade, mas o bastante pra que percebêssemos, por exemplo, que tocava uma sequência de músicas do Roxette em espanhol. Mica chegou a resmungar um protesto no início de Un Día Sin Ti, mas que não serviu pra nada. Aproveitei pra encostar a cabeça à janela e escutar a minha voz interior, que continuava juntando palavras e tentando organizá-las num quebra-cabeça, até que chegamos ao ponto em que se via o Aconcágua.


Estávamos a quarenta quilômetros de distância dele, e isso parecia nada. Também pareciam nada os seus sete mil metros de altura. O silêncio ali ficou maior do que no carro, mas já não pesava nem um pouco. Tive que rever a minha ideia de que um coração ferido apaga qualquer paisagem: nada era maior do que a maior montanha da América do Sul. Mica se acomodou nos braços de Fabián. Modesto e Virgínia também se aproximaram e, de mãos dadas, pareceram entrar em comunhão com a paisagem. Abri o caderno: o poema agora parecia escrito por um outro. Mas anotei mesmo assim, eu morro um pouco toda vez que é ele quem te faz rir – uns versos que destoavam de tudo o que eu sentia ali. Voltariam a fazer sentido em algum momento. Mas não ali.

Fomos almoçar em Las Cuevas, uma cidade com população fixa de sete habitantes. Modesto contou que tinha sido percussionista quando jovem, e que sempre gostou muito de bossa-nova. Falei um pouco sobre poesia e sobre as coisas que escrevo, e prometi a Virgínia que mostraria a ela o poema daquele dia assim que ele estivesse pronto. Fabián e Mica voltaram a se desentender. Depois do almoço, Modesto foi tirar um cochilo no carro e Virgínia o acompanhou; o casalzinho se isolou pra continuar brigando, e tive um tempo livre pra cuidar um pouco mais daquela minha estranha arquitetura.

Não me peça pra ficar na tua vida porque eu quero te beijar agora e a tua vida não tem disso não.

No caminho de volta, fizemos uma última parada na Puente del Inca, uma ponte natural e muito bonita, mas que não podia mais ser atravessada por turistas por causa do desgaste do tempo. Tirei algumas fotos lá e me afastei um pouco, indo me sentar a uns trilhos de trem que passavam ali perto.



Agora começava a me sentir melancólico pelo fato de que em breve teria que me despedir dos meus companheiros daquele dia, talvez pra sempre. E me entristecia que Fabián e Mica estivessem daquele jeito e não tivessem aproveitado tanto o passeio. E me afundava em um labirinto de vagas coincidências a história que eu desenrolava em meu poema.

Quem sabe um dia a gente se encontre mesmo, por acaso. Quem sabe você me acene do outro lado da rua e quem sabe eu até responda. Quem sabe a gente até sorria.

Mostrei a Virgínia o que eu tinha escrito até então, mas esclareci que ainda me faltava um desfecho. Ela não teve dificuldades pra ler em português, o que não chegava a me surpreender. Quando voltamos pro carro, Mica esperou que eu decidisse de que lado iria embarcar pra me deixar entre ela e o namorado – ou talvez agora ex-namorado. Desta vez o silêncio era pesado mesmo, e a música, definitivamente, não ajudava. Quando já estávamos quase em Mendoza e a música era Goodbye, do Air Suply, fiquei feliz por encontrar um título pro meu poema, e anotei mentalmente Nada mais pra dizer enquanto Mica explodia e dizia ao pai que desligasse de uma vez aquela mierda. Achei que o silêncio ficaria insuportável, mas então Virgínia me perguntou se eu tinha achado os versos que me faltavam. Infelizmente, ainda não tinha achado, não. Mais um breve momento de silêncio ameaçador e então Modesto começou a batucar no volante, cantando baixinho: Você abusou... Tirou partido de mim, abusou...

Pouco mais tarde, quando desembarquei, depois de uns abraços e apertos de mão desajeitados no carro, Modesto abriu a janela do motorista pra se despedir e me deixar uma lembrança bem mais condizente com aquele dia todo inusitado. Erguendo a mão com o polegar e o dedo mínimo esticados, antes de partir e desaparecer pra sempre, disse com uma voz arrastada, mas em um português impecável e com um grande sorriso no rosto: Numa boa... Chuchu beleza!

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017


Puente del Inca
(Mendoza, Argentina)
Se um dia você olhasse pra mim do jeito que olha pra ele eu moveria montanhas, eu iria até o inferno, iria até a droga do limite do Universo e nunca mais existiria nada que pudesse separar a gente, mas agora estou reconhecendo que eu perdi. Não vai servir pra nada o teu olhar de “eu não queria machucar você”; sei muito bem que eu sou legal, que um dia vou achar alguém legal e ser feliz com ela, mas não diga isso porque é pouco e nós não somos bons amigos. Estou aqui por um único motivo e não tem nada de nobre em fingir que me contento só com uma parte. Nem vou dizer que o que me importa é que você esteja bem, que é bom te ver assim alegre e achando a vida mais bonita quando a verdade é que eu morro um pouco toda vez que é ele quem te faz rir. Me chame de egoísta, tanto faz, diga que o que eu sinto nunca foi amor, mas não me peça pra ficar na tua vida porque eu quero te beijar agora e a tua vida não tem disso não, então eu já estou fora dela. Vamos fazer isso direito, vamos direto pro “foi bom te conhecer”, pro “um dia a gente se encontra por aí” e quem sabe um dia a gente se encontre mesmo, por acaso. Quem sabe você me acene do outro lado da rua e quem sabe eu até responda. Quem sabe a gente até sorria. Não importa. Não é o primeiro fim do mundo e, se me lembro bem, a gente sempre acorda na manhã seguinte.

domingo, 3 de dezembro de 2017


Você só vê quando eu não posso estar falando sério
Só vê se eu levo a sério demais
Só vê tons de cinza
Só vê furta-cor
Você não vê que eu posso estar falando sério
Não vê quando estou rindo com você
Só vê preto no branco
Só vê degradê
Você só vê se eu tô querendo sair de fininho
Só me vê querendo chamar a atenção
Só me vê querendo
Só me vê só me vê só me vê
E é só você que não vê