sábado, 27 de novembro de 2021


(Diários de Machu Picchu #05)


 

Quando levantei os olhos, algum brilho repentino ofuscou a minha visão, e no momento seguinte lá estava ele, aquele sorriso. O que não tem como explicar: ao mesmo tempo em que ele era tudo que eu via, pareceu que o mundo todo em volta dele ganhou vida. Aquele sorriso. O Urubamba, estrondoso ao nosso lado, o calor ligeiro do sol, um sorriso, e só depois reconheci o rosto dela, a mesma dançarina da praça do outro dia. 

 - Mas não precisa me contar com poesia - reclamou Antero, dando outro gole generoso de vinho. 

Pra mim, eu estava falando normalmente. E foi o que eu disse a ele, mas ele meio que fez uma careta e ficou por isso mesmo. Nem tinha outro jeito de contar. Era poesia. 

Fazia uns dois dias, na praça, parecia que ela dançava só pra mim, a saia alaranjada esvoaçando, os olhos brilhando à distância e aquele sorriso. Longe, eu não saberia dizer com certeza se era pra mim que ela olhava. Depois dos aplausos, antes de desaparecer, mais uma vez olhou em minha direção, juntou as palmas das mãos diante do peito e se inclinou em saudação. 

“Adeus”? 

“Olá de novo”? 

- Não sei se eu acredito no amor - comentou Antero, de olhos baixos. - Amor à primeira vista...? 

Mas então naquela manhã tinha acontecido a segunda vista, e a terceira, e eu queria ter ficado olhando sem contar nunca mais, só que fluiu de outro jeito. 

Nossa comida chegou e eu e Antero trocamos algumas palavras com a garçonete que vinha da Tailândia e era muito simpática, depois nos demoramos um pouco provando os nossos pratos e pareceu por um instante que o assunto estava encerrado. Não pra mim, claro, pra mim ainda estava muito presente. Ela estava acompanhada de uma amiga e mal tivemos tempo de trocar duas ou três palavras, vamos pro Santuário pela escadaria, eu te vi dançar, e o que mais mesmo? E aquele sorriso. 

- Por que você não foi atrás dela? - perguntou Antero. 

Por que eu não fui com ela até a entrada do Santuário? Ela não teria ido embora mais rápido se eu dissesse que estaria à espera quando ela voltasse. 

Agitei a cabeça como se pudesse espantar os pensamentos. 

- Sabe, Antero, eu pedi arroz como acompanhamento e não salada - falei. - Nada contra a salada, está muito boa e eu não estou com a menor vontade de reclamar, mas vê se me faz o favor de não testar demais a minha paciência.


 

sábado, 20 de novembro de 2021


 


 

quando eu amava era um blues quando eu amava em neon de um amor noite afora, a vodca até quando um cigarro era aceso os paralelepípedos do centro histórico e os passos soltos descompassados sempre um ombro amigo sempre um comentário amargo inteligente revolucionário, os filmes europeus e orientais e independentes em cinemas de rua e romancistas politizados e poetas da contracultura em páginas rabiscadas de cinzas e manchadas de dor e lágrimas, quando eu amava era um jazz e então batom vermelho all that happiness happening também performances durando mais de uma semana em praças e em grandes construções abandonadas, havia algo de sujo na voz algo de sujo no gesto algo de sujo algo de sujo algo de muito puro e rock’n’roll na veia e na fumaça apartamentos velhos de azulejos encardidos e eu só sei que quando amava os homens e as mulheres e eu amava a madrugada labiríntica a vertigem da metrópole o caos das nossas vidas sempre urgentes e desesperadas, quem sabe eu não amasse ninguém nada ou só amasse a mim mesmo ou nunca tenha amado tanto e tão de verdade, quem sabe a noite só exista as ruas só existam à noite pros amantes desse tipo, quem sabe as portas tenham se fechado agora ou quem sabe aquele céu tenha sido sempre desperdiçado por nossa vontade louca de ter asas, ou era um voo impossível que acontece apenas quando não sabemos que não temos asas, quem sabe, quando eu amava as esperanças e as certezas eram sempre muito parecidas, 
tão altas 
tão distorcidas 
como as guitarras

sábado, 13 de novembro de 2021



CAPA
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
DESCRIÇÃO DO ESPAÇO CÊNICO
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Cenas anteriores:
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(Novas cenas em breve.)
CENA 1

(Escuridão completa. No exato instante em que a música de abertura termina, começa-se a ouvir a voz de Diogo, em volume crescente, repetindo "Não, por favor não, eu não quero isso", etc, até que a luz se acende sobre ele e ele assume um tom defensivo.)

DIOGO: Era o começo da primavera. A gente… era um sábado azul, muito azul, o céu muito limpo, o sol forte, a gente… a gente era um casal jovem querendo aproveitar o fim de semana perto da praia… No princípio, era só isso, uma tarde quente, eu era… (Luz sobre Karina.) E era só nós dois, você lembra?

KARINA: Lembro.

DIOGO: Aquele céu azul, foi quando a gente conheceu o Ludo, né, amor? (Luz sobre Ludo, que acena para a plateia.)

KARINA: O… Não, o… Quem chegou antes foi o L. (Luz fraca sobre L, inquieto em algum tablado de transição.)

DIOGO: Será? Ele já chegou…?

KARINA: Sim, o… Ele… É, pois é, ele já chegou…

DIOGO: Ele veio antes.

KARINA: Primeiro, é. (Apaga a luz sobre Ludo.) Já veio louco atrás da Pâmela.

DIOGO: Procurando a Pâmela.

KARINA: É. Não, ele já achava que ela estava com o outro.

DIOGO: Ele já veio procurando briga, eu tentei acalmar.

L: Acalmar o quê?

KARINA: Eu tentei ajudar, também, mas apareceu a Helena.

(Luz sobre Helena, no mesmo lugar em que antes estava Ludo, e ela repete exatamente o mesmo gesto que ele tinha feito: acena para o público.)

L: Eu tenho certeza que essa vagabunda…

HELENA: Ei, olha essa língua!

KARINA: Pode parar. Falou em vagabunda, eu já sei que é um babaca machista da porra.

L: Ela está aqui. Ela veio pra cá com outro homem.

DIOGO: A Karina saiu dali com a amiga nova e me deixou tomando conta do cara. (Karina vai se juntar a Helena e as duas somem.)

L: Eu não preciso de ninguém que tome conta de mim, não. Essa vagabunda que vai ter o que ela merece, é só isso.

DIOGO: Ei, não fala assim dela.

L: Você nem conhece essa puta!

DIOGO: Eu sei. Não conheço, mas não tem necessidade…

L: Então, meu irmão… Eu vou fazer… Claro que tem necessidade, eu vou fazer ela pagar.

DIOGO: Ela não é tua, você acha que ela é tua?

L: Eu não… Cala a boca, eu vou te arrebentar na porrada daqui a pouco, hem?

DIOGO: A Karina ficou horas longe, ela desapareceu completamente.

L: É você que se esconde atrás de mulher, você gosta de ser mandado? Você acha que tudo bem, se você encontrasse a tua mulher com outro você não ia querer matar a filha de uma puta?

DIOGO: Eu… Olha… Eu não sei como eu consegui segurar esse cara ali por tanto tempo, ele ia…

L: Eu quero matar. É claro que eu quero matar.

DIOGO: Daí que apareceu o Ludo.

LUDO: Eu moro aqui perto.

DIOGO: A Karina achou que você estava aqui desde o começo.

LUDO, distraído: É… eu... estava?

DIOGO: Estava?

LUDO: Ah. Mania. Eu falo por causa de como as palavras soam, eu acho.

DIOGO: Deve ser, é.

L: Eu já tinha esperado demais, eu sabia que tinha uma casa ali perto onde ela podia estar.

LUDO: Você sabia como, meu amigo, me fala.

L: Eu não sou teu amigo. Não interessa, eu sabia.

LUDO: É intuição.

L: Eu paguei um cara.

MANO, entrando: Eu queria só… matar esse cara!

DIOGO: Não, calma, não foi ele.

L: "Não foi ele" o quê? Do que é que vocês estão falando?

LUDO, para L: Você está no passado e ele já está no futuro, é isso que está acontecendo.

L: Não, eu sei, eu entendi, isso é uma peça de teatro e a gente está só contando essa história toda, né?, mas o que… passado? Por que "não foi ele", o que você está querendo dizer?

KARINA: A Helena desapareceu.

L: Não, espera, agora a gente está falando de uma coisa importante, aqui.

KARINA: A minha amiga sumiu. Ela estava comigo.

DIOGO: Então a Karina decidiu que tudo tinha sido culpa do Ludo.

KARINA: Ela… Para de narrar a minha vida! A Helena desapareceu um pouco antes desse cara aparecer.

L: O que é isso, você veio roubar minha cena?

DIOGO: A cena era minha, pra começo de conversa. Agora eu não posso mais nem narrar os acontecimentos.

KARINA: Uma mulher desapareceu e você só pensa no teu chifre.

LUDO: Você está falando de uma pessoa que não existe.

DIOGO: Vocês nem tiveram essa conversa! Chega disso! Não deu tempo dela dizer que a Helena tinha desaparecido, ela já voltou partindo pra cima do Ludo, brigando, a gente não entendeu direito o que tinha acontecido, mas foi aí que a Pâmela apareceu.

KARINA, mordaz: Com o amante?

DIOGO: Não… Ainda não logo de cara. Quer dizer, todo mundo esperava isso mesmo, mas no começo veio só ela.

MANO: Não, chega. Para. Isso precisa parar, eu não aguento. Eu… me desculpem, eu não quero reviver esse dia. Por que vocês todos se juntaram para relembrar isso? Que tipo de crueldade… (interrompe-se ao ver Pâmela. Ao longo das falas seguintes, ele vai mergulhando nas sombras, sem tirar os olhos de Pâmela, até desaparecer.)

PÂMELA: Eu não posso morrer, depois dessa tarde. Eu acabei de nascer.

L: Ah, mas eu vou matar essa vagabunda!

DIOGO: Não, calma, não foi assim que aconteceu, não foi isso. A gente não deixou ele chegar perto dela. Eu e o Ludo, a gente… Ludo? Cadê o Ludo? (Ludo não está mais em cena.)

HELENA: Você está falando de uma pessoa que não existe.

L: Alguém… Já chega! O que é isso, é um filminho da Disney? Comercial de margarina? É lindo olhar aqueles dois, o jeito que os olhinhos dele brilham ao olhar para a minha mulher. (Sacando a arma.) O que me impediu de sacar a arma naquela mesma hora? Eu não estava vivendo o personagem? Eu não tinha ódio bastante?

KARINA: Então a Helena voltou e a gente ficou em volta da Pâmela por um tempo, meio que protegendo ela, porque estava na cara que o L ia fazer uma idiotice a qualquer momento.

L: Eu devia ter atirado em vocês duas também. Ele… Olha lá, você não está enxergando? A tua mulher está apaixonada por aquela outra ali, você não está vendo? Você deveria dar um tiro na cara das duas também.

DIOGO: Não foi… eu… Olha, a tua mulher está sozinha, não tinha por que se preocupar.

(Pausa breve.)

L: Apaixonada por outra. (Luz se apaga, ficam somente as três mulheres.)

PÂMELA: Hoje eu decidi deixar meu marido. Foi uma coisa que ele disse sobre o dinheiro. E sobre estar certo. Ele disse que eram as únicas coisas que importavam: dinheiro e estar certo. Eu tinha recebido uma proposta em um ramo que ele desaprovava e ele disse que não ia dar certo, que eu nunca ia ter nada nessa minha vidinha de merda. Acho que foram essas as palavras que ele usou. E eu decidi que nunca mais ia voltar pra casa.

(Luz se apaga sobre ela e agora permanecem apenas dois focos sobre Karina e Helena.)

HELENA: É verdade? Você se apaixonou por mim nesse dia?

KARINA: Eu… Não, eu não sabia ainda. Eu acho. (Silêncio.) Não, eu acho que eu me apaixonei, um pouco, mas com tudo o que aconteceu depois, eu… (Pausa.) Eu estava completamente apaixonada.

(Apagam-se todas as luzes, exceto por um último foco, muito pequeno, no rosto de Helena, que é replicado em todos os telões, sério, a princípio, até que abre um grande sorriso.)

(Blecaute. Música.)

sábado, 6 de novembro de 2021


 

não estou à tua altura, quem me dera acompanhar teus dias e enxergar de perto cada pequena explosão de sentimento que te abala, andar ao teu lado em raciocínios sérios e xingar os idiotas que não nos entendem, acho que eu iria adorar a tua risada, adoraria poder rir contigo e que você me olhasse de frente e abrisse as portas e me recebesse como um igual e me contasse os teus segredos, mas não vai ter jeito, pouco importa as diferenças estarem num reino totalmente abstrato, que existam só em nossas cabeças, ainda assim elas se colocam como um abismo entre nós dois, teu coração vai até a borda e com medo de altura você acaba desviando os olhos, então aqui estou eu vendo que sou invisível e não gosto nem um pouco disso, não sei se um deus ou se um verme, mas nesse caso dá na mesma, quem me dera ser ouvido uma só vez sem que nenhuma razão falasse ao mesmo tempo no teu outro ouvido, sem nenhum alarme sem nenhum ruído o rio das nossas vozes misturando as suas águas frescas acabadas de sair da fonte, por sermos irmãos e por mais nada, mas então não pode, não devemos, nossos mundos não se encaixam por preguiça eu acho mas não vai dar certo, sinto muito, simplesmente não, nunca, melhor nem pense, nem queira e muito menos tente, porque se não sei lá o mundo explode o sol pifa a Via Láctea desaba