segunda-feira, 29 de julho de 2019



(Diários de Machu Picchu #20)
– Talvez depois de dobrar a próxima esquina – era o que dizíamos toda vez que algum dos nossos planos ia por água abaixo. E foi a última coisa que dissemos um ao outro depois de tanto tempo viajando juntos pelo Nordeste e Norte do Brasil.

Em nossa última tarde juntos, em um passeio de barco pelo Rio Amazonas, Eva compartilhava comigo uma playlist de rocks aleatórios,



cada um de nós com uma das pontas do fone, quando passou pra frente uma música que, como ela explicou, tinha enjoado de ouvir com Marina e lhe fazia lembrar de tempos muito bons com ela, coisas em que preferia não pensar naquela hora.

Não tocou mais no assunto até muito mais tarde, no momento em que nos despedíamos. Ela estava falando de novo sobre como lamentava, um pouco, não poder voltar direto pra Santos, mas ter que ir a Porto Alegre resolver questões burocráticas sem nenhum sentido, quando parou de repente, com uma expressão vaga no rosto, e ficou assim parada por vários segundos. Quando afinal olhou pra mim, sorriu sem jeito, cantou baixinho she lives on love street e depois falou, numa voz profunda e seca:

– Eu me senti como se tivesse morrido, sabe? – Tinha um sorriso tranquilo e triste ao mesmo tempo. Ficou me olhando assim um pouco e depois disse: – Me chame quando resolver terminar de atravessar a floresta até a Colômbia. Não sei, parece uma metáfora de nascimento.

Tenho a impressão de ter visto os seus olhos se encherem de lágrimas, mas ela virou o rosto e mudou de assunto, uma conversa que já não acompanhei mais muito bem sobre o ar muito úmido e os meninos jogando bola na praia. Era minha vez de mergulhar por um instante em pensamentos e sensações que se misturavam e me arrastavam um pouco pra longe. Ou não tão longe assim, porque ainda tinham a ver com Eva: a verdade era que uma parte minha estava prestes a morrer também, quando eu me despedisse dela.

– Que música você passaria pra frente? – ela perguntou..

– Agora? – eu disse. – Aquela musiquinha lá do “deu pra ti, baixo astral, vou pra Porto Alegre, tchau”.

Ela riu e deu um soco no meu braço.

– Ela nunca deixa de aparecer – resmungou.

– Sim – respondi. – Parece que as músicas não dão a mínima.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Pra ver essa felicidade calma em teu rosto
Como que derramada
Essa luz que se espalha em teu peito
Estou sendo amada de graça
Nunca fui só
Pra te ver se tornar primavera em paraísos da terra
Quase alada de tão livre
Tão bela
Abstrações nada imaginárias
E sol no teu jardim
E brisa em teu domingo à tarde
Pra te ver pra sempre
Pra te ver e
Pra te ver
Só pra te ver mesmo só isso


segunda-feira, 15 de julho de 2019



Tinha cerca de sessenta anos, os cabelos grisalhos e a pele escura. Tomava um café na rodoviária quando o conheci. Não pensou duas vezes ao me ouvir dizer pra onde estava indo:

“Eu te levo lá.”

Ficava em outra cidade, mas era exatamente pra onde ele estava indo, também. No caminho, foi contando histórias da vida dele e do lugar, os nomes das montanhas de pedra, detalhes da fabricação da cachaça. Disse que tinha um filho ou dois, não lembro bem, mas contou uma história de quando um deles era criança que até hoje eu lembro em detalhes.

O menino tinha uns nove anos quando, numa noite de domingo, chegou com uma conversa tão esquisita que ele nunca mais conseguiu esquecer. Perguntou se não poderia ser que eles todos fossem só personagens de uma história que alguém estivesse contando, ou sonhando, ou que estivesse passando em uma espécie de tela de cinema em outra dimensão, quem sabe. E falou sobre uma peça de teatro que tinha visto na rua, algo sobre uma menina que tinha saído pelo mundo em busca de respostas pra perguntas daquele tipo.

A menina viveu muitas aventuras e enfrentou grandes perigos por onde passou, até que em certo momento se encontrou com o Pequenininho Triste, que se chamava assim mas tinha na verdade quase três metros de altura. Ela contou pra ele que estava em busca de respostas pra perguntas sobre a realidade e sobre quem a gente é, mas ele a aconselhou a desistir da busca. Disse que milhares de pessoas antes dela tinham procurado pelas mesmas respostas e nunca tinham encontrado nada.

“Eu mesmo”, disse o Pequenininho Triste, “quando era velho, fiz a minha procura. Foi o que me deixou triste assim”, confessou. Contou que em sua jornada tinha enfrentado mais sofrimentos do que acreditava que era possível um homem suportar. Mas disse que o mais longe que conseguiu chegar foi até o sótão de uma velha assustadora que todos na cidade diziam que era bruxa e que sabia responder com acerto qualquer pergunta que lhe fizessem. Ele foi até lá, fez todas as perguntas que queria e tudo o que ganhou foi uma xícara de um chá horrível e uma bufada de poeira na cara no instante em que ela abriu um imenso livro pra ler de lá num único sopro e como se desconhece a existência de vírgulas e pontos uma história sem pé nem cabeça sobre uma mulher guerreira que tinha existido milhares de anos atrás.

A Andarilha, como era chamada, andava de vilarejo em vilarejo combatendo demônios e dragões, salvando povos inteiros da destruição sem quase nunca receber algo em troca. Em uma de suas batalhas, recebeu a ajuda inesperada de outra mulher, que a partir de então passou a acompanhá-la em suas aventuras. Certa noite, quando conversavam perto da fogueira, a Andarilha dividiu com a nova companheira os segredos que seus ancestrais contavam nas noites da Grande Fogueira, verdades sobre o ser e a terra, lições que assombrava e que fascinavam os corações de todos. Um desses segredos era a história do surgimento do mundo e de todas as coisas que existem.

No princípio, diziam, só o que existia era um imenso abismo. Certo dia, porém, apareceu no fundo desse abismo um outro abismo, que era na verdade uma cópia exata do primeiro, e que por isso mesmo tinha também um outro abismo no fundo, e esse outro abismo tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo,

terça-feira, 9 de julho de 2019



um barco desliza quieto, é uma estrela cadente, um beijo atravessando as horas frescas da noite um sono morno a pele quente o tempo é longo a entrega é doce e um barco desliza quieto, uma estrela é cadente, os dedos entrelaçando carícias nas costas das mãos são as fontes são fortes de afeto são tão delicadas prisões desejadas sutis e tão quietas e um barco desliza uma estrela quente, são dois corações misturados e quietos nas águas cadentes, e um beijo embalando um barco embalando um beijo embalando a noite embalando o rio quieto os dois corpos tão perto o vagar caudaloso e certo debaixo do abraço e de ser abraçado pelo céu estrelado, as canções dos encantados, o nado dos botos e o voo dos pássaros, um barco desliza quieto, um beijo atravessando as horas uma estrela cadente e dez cem e milhares de os dois a sós, de noites sem fim, de um rio, e de sim

quarta-feira, 3 de julho de 2019


Sonhei que você era outra pessoa. Você tinha uns trinta anos e era asiática, tinha outro nome, até, mas era você. Já tinha acontecido outras vezes, antes. Você já teve tantos nomes nos meus sonhos, tantas idades, cores, caras, gêneros. Sonhei que estava conversando com um bailarino e ele era você, depois ele se transformou na Rita Lee e saiu se rodopiando. Uma vez sonhei que você era uma cerejeira florida, outra vez sonhei que você era uma libélula de água – mas isso eu não sei explicar – e teve uma vez que você era um espaço vazio, simplesmente, que eu sabia que era você só porque eu sempre soube, porque eu só sonho com você, até quando não sonho. Sim, sempre que não sonhei, até onde me lembro, você era o meu descanso absolutamente mergulhado em pura inconsciência, e eu te amava, ainda, sabendo que era você, de dentro do meu mais profundo e silencioso não saber de nada.