quinta-feira, 28 de novembro de 2019

"Você nunca me amou", quero dizer, mas lembro que ninguém aqui pagou pra ouvir minha tragédia. Antes de entrar no palco, deixamos penduradas num cabide as nossas mágoas, é assim que tem que ser, se não, não é teatro. Só que hoje à tarde ela deixou a aliança sobre a mesa antes de ir embora, e agora aqui estamos nós pra mais um espetáculo. Eu tenho que falar “É bom te ver de novo”, mas sem mostrar o coração em pedaços. Quero morrer bem antes do fim do primeiro ato.


Quieto, eu fico olhando ela sair por uma porta cenográfica. Não poderei gritar o nome dela porque, infelizmente, só sei como se chama a personagem. E meu roteiro não diz nada agora além de “Cai o pano”. Não tenho como calcular em quantos níveis não me importo nem um pouco, nem como explicar por que me importo tanto. Ah, sim, fizemos uma bela cena, ela e eu. Cai o pano – aplausos – deveria haver uma consagração aqui. Nossos sorrisos tentam se espalhar por sobre a maquiagem, inutilmente, sem o menor traço de verdade. Não há nada maior que essa dor contida – uma tristeza, lembra?, que o poeta bem intencionado achou que poderia usar como aquarela. E que fica lá, mancha de luz nos olhos quando os refletores se apagam. Como um troféu de silêncio. Como uma paz muito plástica.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Suas janelas de assistir, poltronas de esticar as pernas e biscoitos e bebidas bobas de matar o tempo e disfarçar aquela fome toda de vida, a fome desmentida e renegada soterrada pelo medo horror e amor ao tédio então chamado de descanso ou segurança, os seus passeios pela praia ou pelo parque, os seus mirantes monumentos e filminhos de domingo à tarde, tudo que amortece o fogo, os seus remédios e joguinhos de baralho ou bola ou quem corre mais rápido ou quem derruba o outro mais rápido, qualquer coisa que grite mais alto, que aquiete, silencie, cale, os seus sorrisos sem graça e suas palavras quietas sem alma, os seus limites claros e armaduras visíveis sobre corações apodrecidos presos a tão pouco e tão certos de que é bem melhor que nada, só um amor pré-fabricado, feito sob medida e cheio de instruções implícitas às vezes vomitadas com raiva como se todos já devessem ter aprendido há muito tempo, seus cachorrinhos e gatinhos e churrascos e o preço dos seus carros, sua indiferença diante do maravilhoso inexplicável, sua constante fuga de si mesmos, seu existir arrastado gastando o chão, sobrando e transbordando a Terra, só mais um igual a tantos, próximo e sem vez, espíritos mofados.

terça-feira, 5 de novembro de 2019


























VOCÊ É BURRO
estudos arqueológicos apontam para a existência de inscrições como esta com mais de cento e quarenta e nove mil, seiscentos e setenta e dois anos de idade espalhadas em cavernas, portas de banheiro e comentários de internet,
disse-me o Mestre.

E me contou a história de Liu Dig-Dong Lerei da Montanha.

NINGUÉM PASSA POR AQUELA PORTA
foi a segunda frase mais falada e escrita desde que o tempo nasceu, disse-me o Mestre.
Era uma porta branca, dourada, azul, tão alta que ninguém nunca viu onde acabava.
E estava sempre fechada.

Diante da porta, acumulava-se uma multidão maior que a soma de todos os habitantes de todas as metrópoles de todas as eras.
A maioria chafurdava na lama, como porcos, porém muitos deles andavam eretos e vestiam roupas bem passadas, pareciam lúcidos e com tudo sob controle, e nunca diriam VOCÊ É BURRO usando exatamente essas palavras.

Liu Dig-Dong atravessou pelo meio deles sendo apedrejado, cuspido e humilhado até chegar aos pés da Grande Porta.

VAGABUNDO
BABACA ARROGANTE
VOCÊ É BURRO
NOJENTO IMUNDO
FRACASSADO
VOCÊ É BURRO

VOCÊ É BURRO

Liu Dig-Dong estava no limite de suas forças, coberto de feridas, e ao ver suas mãos trêmulas se erguendo em direção à maçaneta, devagar, a muito custo, os que estavam à sua volta riram e entoaram coros de FRACOTE e MULHERZINHA.

A porta se abriu com um simples toque na maçaneta.

A luz que vinha do outro lado cegou a todos por um instante, e fez com que os que estavam mais próximos se afastassem.
Todos, exceto um.
Exceto Liu Dig-Dong e mais um, corrigiu o Mestre.
Um homem magro, vestindo apenas uma pequena tanga, sentado em posição de meditação, de olhos fechados, movendo os lábios numa prece silenciosa.

“O que está fazendo?”, perguntou Dig-Dong.

“Estou pedindo aos céus que me deixem entrar”, respondeu o homem, sem abrir os olhos nem mover um só músculo.

“A porta está aberta”, falou Dig-Dong.

Mas o homem continuou em sua prece.

Dig-Dong olhou para o outro lado. Começava a se acostumar à luz e a identificar as formas do mundo que esperava por ele.

Que esperava por todos eles.

No momento em que Dig-Dong avançou, a multidão voltou a gritar, enfurecida.