sábado, 30 de setembro de 2017


Alguém me disse que San Pedro de Atacama tem “a maior concentração de bichos-grilos por metro quadrado do planeta”.

Já estive aqui antes, nesta mesma lanchonete com mesinhas na calçada tomando o mesmo café com chantilly e sorvete de baunilha. Que fica bem melhor depois que o sorvete derrete, diga-se. Tive sonhos confusos à noite, sonhos pesados, sérios, agora há uma porção de casaizinhos correndo de mãos dadas pela praça e bebês e cachorros e um céu exageradamente limpo. Bem ao longe, uma dorzinha de cabeça, e olha que eu nem bebi tanto assim ontem à noite, pelo menos não tanto quanto os outros do albergue. Aconteceu que um povo me chamou pra jogar baralho antes de dormir, um jogo legal que eu não conhecia e que aprendi bem rápido, mas em que não me dei muito bem. Tínhamos que conversar em inglês e achei isso difícil, agora já não lembro mais nada das regras do jogo nem como se fala valete de espadas. Era uma gente vinda de vários lugares, Austrália, Irlanda, sei lá mais o que, então tinha uma mistura interessante de sotaques. E a trilha sonora também estava ótima, tocou várias músicas do Pink Floyd e cantamos juntos uma porção de outras coisas como Father and Son e Blowin’ in the Wind. Depois dei um bom tempo sozinho perto da fogueira, aí fui dormir tarde e confortavelmente bêbado.

Queria ficar sem fumar hoje, mas não me animei a enfrentar isso no meio de uma ressaca, mesmo que uma ressaca leve, então a primeira coisa que fiz quando saí pela manhã foi achar um lugar onde comprar cigarros. Um maço de cigarros aqui custa bem mais do que no resto do Chile, e quando o cara me falou o preço, fiz uma careta e perguntei “Por que tão caro?”. Foi bem mais pela surpresa do que reclamando, só que ele não entendeu assim, fechou a cara e disse “É este o preço. Se você não quiser, não compre”. Sempre levo um tempo pra perceber quando alguém está sendo grosseiro comigo, e neste caso, quando percebi, só lhe dei as costas e saí sem dizer mais nada. Sinto muito. Sem paciência pros homens e suas maravilhosas máquinas registradoras e todos os seus eternos passatempos bélicos. Acabei pagando o mesmo preço em outra venda, claro, mas dessa vez rolou até uma troca de sorrisos e obrigados. Tão simples, minha gente. Saí de lá e vim direto pra esta lanchonete, beber o café gelado que eu me lembrava de ter gostado da outra vez em que estive aqui. Tranquilamente. Pelo menos enquanto a minha mesa ainda estiver na sombra.

Agora tive que fazer uma pausa nas anotações porque passou por mim um casal de cinquentões brasileiros que eu conheci no albergue e que vão começar hoje mesmo sua viagem de volta. Os dois são professores universitários em Ubatuba – ela, de História; ele, não lembro. Anotaram o e-mail deles num guardanapo. “Pra quando você for a Ubatuba”, disseram, e me prometeram que eu poderia ficar na casa deles e que até me emprestariam uma das pranchas de surfe que eles têm em casa. “Vocês surfam?”, perguntei, animado, como se fosse a coisa mais natural do mundo, mas eles reviraram os olhos como se eu tivesse feito uma pergunta estúpida. Tudo bem. Acho muito difícil que eu vá a Ubatuba e não sou o maior fã de surfe, mas vá lá, guardei o e-mail com carinho e voltei a estas anotações já bem mais feliz do que quando comecei.

Depois passou um menininho de uns cinco anos falando sozinho. “Setecentos mil”, ele dizia, parecendo impressionado. Quando viu que eu estava olhando, balancei a cabeça e disse “Não. É muito”, mas nem sabia do que ele estava falando, falei só de brincadeira. Ele abaixou a cabeça e passou por mim em silêncio, aí um pouco mais adiante parou, virou pra mim e estendeu a mão cheia de moedas. “E quanto eu tenho?”, perguntou.

Contei setecentos.


sábado, 23 de setembro de 2017



Alguma coisa te escapa

Tua opinião é uma gota de chuva caindo no oceano, melhor não olhar.

Aquele rapaz oriental que acaba de sair do prédio é um traficante de antiquadas justificativas para o ódio e vai pegar um táxi para encontrar amigos no shopping, o taxista sorri pelo retrovisor e deseja boa tarde e começa a comentar sobre os milhares de poetas fuzilados e finais de campeonatos, aqueles cartazes de milagres industrializados, você não pode abraçar todos os que estão morrendo na Síria ou passando fome na África, ainda existem os que acreditam que a Terra é plana e os que deixam suas crianças adoecerem por duvidarem de vacinas, uma menina acaba de se encontrar com um pedófilo em um alegre e colorido e confortável mundo virtual, aquela mulher atravessando a rua é humilhada diariamente por gostar de astrologia e carrega um copo de café Starbucks e pensa em terminar com o namorado hoje à noite mas depois do sexo, esvaziaram-se todas as explicações para o altruísmo, você não pode saber e não é porque é segredo mas porque você não é capaz mesmo, aqueles que se jogam do alto de montanhas numa bicicleta e moças que se prostituem para sustentar o vício em drogas e moleques arrogantes mandando bordar "doutor" em seus jalecos caros, um velho se debruça à janela e vê, pombos cagam em para-brisas e casacos e canteiros e nos bancos das praças, nenhum controle remoto pode alcançar os que não ligam, arranha-céus de vidro e nomes de furacões e colecionadores de discos de vinil, toda essa desengrenagem, libélulas e sites de notícia e bares em que se fala mal dos negros e choveu no fim da tarde e lilases e tudo o que passa, tudo, quantas senhas você tem, o que você pensa que é sorte.

Não por eu estar sentado aqui sozinho com as mãos cobrindo o rosto, mas a solidão de um homem é uma lágrima no meio do oceano.

(Ou talvez isso não importe nem um pouco agora que somente os sádicos são adorados.)

sábado, 16 de setembro de 2017


Nada, confesso: não tenho nada pra te oferecer. Ou este vale de poemas ou as pontes pra longínqua nebulosa em que fui feito. É impossível prever o que vai resultar do nosso encontro, e minhas mãos procuram as tuas por vontade própria. Não conheço ninguém mais desinteressante do que eu. Você vai me ver falar com plantas, bichos, objetos, paisagens. Penso em você na minha cama e tua pele me leva ao delírio. Muito cedo você vai se entediar e me deixar por um motivo banal. Não sei inventar alegrias. Não sei improvisar interesse. Tenho vergonha da poeira sobre os móveis, pilhas de papéis amassados, a pintura descascando, não esperava te encontrar tão cedo. Tua imagem me desperta e já começo a ensaiar qualquer assunto, mas sempre me parece que devia ser outro. Não tenho nada pra te oferecer. Ou os campos minados da minha ingenuidade explodindo em flores alaranjadas.



(Ou azuis, se você preferir.)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017


meu irmão sinto muito eu venho de um mundo em que as guerras são bem mais sutis

em que a raiva não se mostra assim tão clara e tão direta pelo tom da voz

em que o desprezo se disfarça de ironia e chovem palavras de gelo olhos de gelo a superioridade óbvia que somente nós pobres mortais não conseguimos ver

mas ainda assim é o mesmo jogo e já não posso me deter à estrada a cada inquietação revolta o desespero e tem aí milhões de vozes que jamais foram ouvidas

se eu não enxergasse tantas léguas além do teu jogo ou se eu não estivesse farto de jogar

se você fosse o primeiro único macho de orgulho ferido querendo testar os limites da força da minha ternura

fico tentado a fazer um mea culpa só que já me demorei demais pagando pelos erros que uma vez eu cometi e pelos que não cometi também

vá me deixe viver um pouco a minha própria vida

um dia terei a palavra que te ressuscite ela está em meu coração mas falta ainda um bom caminho até que esteja na ponta da língua

e quero muito te falar meu irmão eu quero mesmo

quero te ver acolhido e respeitado e reinando absoluto sobre os dias

só nos falta um silêncio mais fundo talvez

nada é realmente sobre conquistar e destruir

se eu estivesse pronto ao menos

mas talvez não conseguisse mais do que falar de novo da importância das pequenas coisas

algum discurso fácil e batido e gaguejado pela minha dúvida

porque agora eu tenho cá pra mim ou acho ou ando bem desconfiado

de que as coisas importantes mesmo caso existam

são ainda menores que as pequenas


sábado, 2 de setembro de 2017



Campomanso, 25 de julho de 2012

Débora;

Encontrei uma foto tua de muitos anos atrás e fiquei um tempão olhando pra ela e chorando, desculpa, não tinha como evitar. Queria conseguir ser sempre um poço de energias positivas, especialmente pra você, mesmo que a gente saiba que não é assim que funciona. Fiquei pensando em explicações pra estar tão longe, explicações pra não ter estado mais perto quando era possível, explicações, explicações. Fiquei procurando um jogo de palavras, alguma coisa engraçada, qualquer comentário banal sobre o clima ou o que fosse mas que pudesse expressar esse carinho eterno infinito incondicional que tenho por você. Tantas lembranças boas, minha querida. Tanta saudade, tanta.

Ainda acompanho as tuas notícias pela internet, aqui e ali, um quebra-cabeça incompleto, peças soltas que espalho pra ficar olhando como se eu ainda fosse parte da tua vida e a qualquer momento você pudesse entrar por aquela porta e me perguntar sei lá, que vestido usar na festa, ou se eu acho que você deveria namorar com Pedro ou com Paulo, ou se eu gosto de refrigerante de uva, ou se eu me lembro de quando cantamos no karaokê ou da noite em que cheguei bêbado na tua casa e quebrei a tua coruja de porcelana. A vida é cheia de trama, minha querida, e eu poderia jurar que um mundo de maldades e mal-entendidos se infiltrou entre nós dois desde a última vez em que nos vimos, mas não queria ter que derramar veneno só pra te prender a mim, e prefiro acreditar que sou eu que estou enganado quando juro assim que um rancor alheio te levou pra bem mais longe do que uma distância no espaço poderia. Estar preso a você, da minha parte, não custa nada: a saudade não é uma tristeza de trevas. Em todo o Universo, não existe força capaz de obscurecer esse amor que lhe tenho.

Amor só amor, como quando chove e não é nenhuma tempestade nem uma garoa fina e fria nem a fúria dos céus nem vontade de dormir até mais tarde nem nada: é simplesmente água caindo em gotas.