sábado, 30 de dezembro de 2017


Qualquer impulso que não nascesse da raiva e que fosse realmente desinteressado, uma fraternidade natural, qualquer vontade de viver que preenchesse o gesto, não uma cegueira que desconhecesse as trevas mas o sol de cada um, do mais profundo altruísmo, da mais sincera empatia, qualquer brisa que esfriasse os ciúmes e rancores, qualquer entrega que valesse o céu, qualquer céu, qualquer, qualquer bondade.


sexta-feira, 22 de dezembro de 2017



Lá se vão, um por um. Com suas palavras como roupas gastas, cães de guarda de rancores e mágoas e raivas cultivadas como frutos negros de que me servi durante toda a vida. Lá se vão as razões e a lógica impecável do meu jogo de xadrez interno; lá se vai minha cobiça, lá se vão meus medos – lá se vão, um por um, os elos da corrente em que me mantive atado por um misto de vaidade e incompreensão.

Deus vive em mim. Nada no Universo descansa enquanto não tiver regressado à pureza com que foi gerado; e tudo descansa, porque é puro: o movimento é ilusório, e só a ilusão se move. Assim, no que não pode ser dito, escrevo. Assim, no que pretendo alcançar, espero.

Deus vive em mim. Guardado no coração que Ele guarda, luminoso e, como fonte de luz, completamente alheio à sombra que produzo. Mas eu, que sou luz, por que não vejo? Eu, que vivo em Deus, por que me interponho em seu caminho?

Aos poucos, lá se vão as perguntas para o silêncio eterno e acolhedor que responde: Eu sempre estive aqui.

Aos poucos, sem que eu precise remar, mas porque remo, o mar me conduz à praia desejada em que sempre estive.

Aos poucos, em paz, dissolvo a tormenta, bebo-a e desperto mais forte – sabendo que a tormenta era eu, e a paz, e a boca que bebia, e o tempo de cada uma dessas coisas ter sido o que foi.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017


A neve nas montanhas parecia chantilly – e eu devia estar de bom humor pra pensar isso. Nunca soube muito bem como fui parar naquele carro com Modesto e Virgínia, mais a filha adolescente dos dois, Mica, e o namoradinho dela, Fabián. Saímos de Mendoza antes do sol nascer, com destino ao Aconcágua, ou o mais próximo que podíamos chegar dele pela estrada. Agora estávamos em um hotel pro café da manhã. Uma confusão de turistas em longas filas por umas poucas media-lunas: ouvi dizer que o Brad Pitt se hospedou naquele hotel quando esteve por lá filmando Sete Anos no Tibete, e achei engraçado que a informação ainda corresse e pudesse servir como atrativo turístico. Engraçado e triste, e engraçado. Na verdade, o meu humor estava começando a decair com toda aquela agitação e café morno. Foi quando a minha atenção foi capturada pelo olhar que uma mulher lançava ao companheiro a umas poucas mesas de nós. Alheio a todas as conversas, abri um caderno e escrevi:

Se um dia você olhasse pra mim do jeito que olha pra ele eu moveria montanhas.

Virgínia quis saber o que eu estava escrevendo e respondi que era poesia. Anotei mais umas poucas frases antes que Modesto decidisse que era hora de seguir viagem. Agora estou reconhecendo que eu perdi. Um misto de sono, a excitação com as paisagens novas e a melancolia crônica não me deixavam ver que o clima entre Fabián e Mica não estava dos melhores. Mas talvez eu tenha sido tocado por isso, de alguma forma, e continuei escrevendo aquele poema na minha cabeça, no carro, enquanto os outros tentavam conversar comigo. Mais tarde, aproveitei uma parada breve que fizemos em uma estação de esqui pra anotar as frases novas no caderno.

Não vai servir pra nada o teu olhar de “eu não queria machucar você”. A verdade é que não importa o quanto seja deslumbrante uma paisagem: quando o coração está ferido, a dor é tudo que se pode ver. Fabián e Mica tiveram sua primeira discussão na estação de esqui, e me lembrei vagamente de Modesto me dizer que eles tinham vindo de Tucumán a Mendoza justamente pra que a menina visitasse o namorado. Quando voltamos ao carro, o silêncio começava a pesar – ainda não muito, é verdade, mas o bastante pra que percebêssemos, por exemplo, que tocava uma sequência de músicas do Roxette em espanhol. Mica chegou a resmungar um protesto no início de Un Día Sin Ti, mas que não serviu pra nada. Aproveitei pra encostar a cabeça à janela e escutar a minha voz interior, que continuava juntando palavras e tentando organizá-las num quebra-cabeça, até que chegamos ao ponto em que se via o Aconcágua.


Estávamos a quarenta quilômetros de distância dele, e isso parecia nada. Também pareciam nada os seus sete mil metros de altura. O silêncio ali ficou maior do que no carro, mas já não pesava nem um pouco. Tive que rever a minha ideia de que um coração ferido apaga qualquer paisagem: nada era maior do que a maior montanha da América do Sul. Mica se acomodou nos braços de Fabián. Modesto e Virgínia também se aproximaram e, de mãos dadas, pareceram entrar em comunhão com a paisagem. Abri o caderno: o poema agora parecia escrito por um outro. Mas anotei mesmo assim, eu morro um pouco toda vez que é ele quem te faz rir – uns versos que destoavam de tudo o que eu sentia ali. Voltariam a fazer sentido em algum momento. Mas não ali.

Fomos almoçar em Las Cuevas, uma cidade com população fixa de sete habitantes. Modesto contou que tinha sido percussionista quando jovem, e que sempre gostou muito de bossa-nova. Falei um pouco sobre poesia e sobre as coisas que escrevo, e prometi a Virgínia que mostraria a ela o poema daquele dia assim que ele estivesse pronto. Fabián e Mica voltaram a se desentender. Depois do almoço, Modesto foi tirar um cochilo no carro e Virgínia o acompanhou; o casalzinho se isolou pra continuar brigando, e tive um tempo livre pra cuidar um pouco mais daquela minha estranha arquitetura.

Não me peça pra ficar na tua vida porque eu quero te beijar agora e a tua vida não tem disso não.

No caminho de volta, fizemos uma última parada na Puente del Inca, uma ponte natural e muito bonita, mas que não podia mais ser atravessada por turistas por causa do desgaste do tempo. Tirei algumas fotos lá e me afastei um pouco, indo me sentar a uns trilhos de trem que passavam ali perto.



Agora começava a me sentir melancólico pelo fato de que em breve teria que me despedir dos meus companheiros daquele dia, talvez pra sempre. E me entristecia que Fabián e Mica estivessem daquele jeito e não tivessem aproveitado tanto o passeio. E me afundava em um labirinto de vagas coincidências a história que eu desenrolava em meu poema.

Quem sabe um dia a gente se encontre mesmo, por acaso. Quem sabe você me acene do outro lado da rua e quem sabe eu até responda. Quem sabe a gente até sorria.

Mostrei a Virgínia o que eu tinha escrito até então, mas esclareci que ainda me faltava um desfecho. Ela não teve dificuldades pra ler em português, o que não chegava a me surpreender. Quando voltamos pro carro, Mica esperou que eu decidisse de que lado iria embarcar pra me deixar entre ela e o namorado – ou talvez agora ex-namorado. Desta vez o silêncio era pesado mesmo, e a música, definitivamente, não ajudava. Quando já estávamos quase em Mendoza e a música era Goodbye, do Air Suply, fiquei feliz por encontrar um título pro meu poema, e anotei mentalmente Nada mais pra dizer enquanto Mica explodia e dizia ao pai que desligasse de uma vez aquela mierda. Achei que o silêncio ficaria insuportável, mas então Virgínia me perguntou se eu tinha achado os versos que me faltavam. Infelizmente, ainda não tinha achado, não. Mais um breve momento de silêncio ameaçador e então Modesto começou a batucar no volante, cantando baixinho: Você abusou... Tirou partido de mim, abusou...

Pouco mais tarde, quando desembarquei, depois de uns abraços e apertos de mão desajeitados no carro, Modesto abriu a janela do motorista pra se despedir e me deixar uma lembrança bem mais condizente com aquele dia todo inusitado. Erguendo a mão com o polegar e o dedo mínimo esticados, antes de partir e desaparecer pra sempre, disse com uma voz arrastada, mas em um português impecável e com um grande sorriso no rosto: Numa boa... Chuchu beleza!

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017


Puente del Inca
(Mendoza, Argentina)
Se um dia você olhasse pra mim do jeito que olha pra ele eu moveria montanhas, eu iria até o inferno, iria até a droga do limite do Universo e nunca mais existiria nada que pudesse separar a gente, mas agora estou reconhecendo que eu perdi. Não vai servir pra nada o teu olhar de “eu não queria machucar você”; sei muito bem que eu sou legal, que um dia vou achar alguém legal e ser feliz com ela, mas não diga isso porque é pouco e nós não somos bons amigos. Estou aqui por um único motivo e não tem nada de nobre em fingir que me contento só com uma parte. Nem vou dizer que o que me importa é que você esteja bem, que é bom te ver assim alegre e achando a vida mais bonita quando a verdade é que eu morro um pouco toda vez que é ele quem te faz rir. Me chame de egoísta, tanto faz, diga que o que eu sinto nunca foi amor, mas não me peça pra ficar na tua vida porque eu quero te beijar agora e a tua vida não tem disso não, então eu já estou fora dela. Vamos fazer isso direito, vamos direto pro “foi bom te conhecer”, pro “um dia a gente se encontra por aí” e quem sabe um dia a gente se encontre mesmo, por acaso. Quem sabe você me acene do outro lado da rua e quem sabe eu até responda. Quem sabe a gente até sorria. Não importa. Não é o primeiro fim do mundo e, se me lembro bem, a gente sempre acorda na manhã seguinte.

domingo, 3 de dezembro de 2017


Você só vê quando eu não posso estar falando sério
Só vê se eu levo a sério demais
Só vê tons de cinza
Só vê furta-cor
Você não vê que eu posso estar falando sério
Não vê quando estou rindo com você
Só vê preto no branco
Só vê degradê
Você só vê se eu tô querendo sair de fininho
Só me vê querendo chamar a atenção
Só me vê querendo
Só me vê só me vê só me vê
E é só você que não vê


sexta-feira, 24 de novembro de 2017


Teu silêncio era um grito de cansaço e de abandono. Numa folha de caderno, teu adeus era espelho e espectro de antigos versos que fiz pra ninguém. Segui teus passos pela vida, teu corpo escondendo e escorrendo luz, dia após dia a tua fragilidade humana acumulando máscaras, dia após dia a tua lágrima e você via, talvez, o mundo que eu te dei de almas e de olhares, você levava as minhas palavras feito mapas, mas seguia adiante em teu definitivo adeus. Um tempo material, rolando e lapidando as pedras e nascendo o limo, se as tuas mãos segurassem as minhas outra vez, vou te conter, e te contar sobre um amor enfurecido, ódio terno, um coração capaz de sentir tudo isso e nada, mais uma noite que fosse e que você dormisse nos meus braços feito criança crescida, grilos e sapos e ventos seriam bem mais que um castelo, mas não, há muita selva lá fora. Teu grito agora é tua presença na estrada, espreitam e você sobrevive, imensa fortaleza de tédio e indiferença e de querer que te adorem e de velas sempre içadas pra próxima fuga. Te estendo as mãos, mas já nenhum dos meus destinos te chama, no vazio dos dias, meses, séculos, estas mãos estendidas te esperam e sabem o que não terão, e fazem seu trabalho ingênuo transformando o mundo e segurando outras mãos e bebendo de outros copos, te esperam e te esperam e você não virá, cada vez mais longe conquistando o céu em que eu falto, constelações de nanquim, aplausos bêbados, todo um séquito de sombras, ninguém paga o que me custa te querer tão bem, não te querem tão bem assim e te querem e ardem, onde o teu grito não me alcança mais, onde a tua voz rouca me escapa, eu que sempre quis me entregar a você mesmo sem conhecer o que entregava – e isso, talvez, o que mais te afastasse – derramo estes versos finais sobre a ferida da ausência: bebe, seja leal, imagem pura e memória, nunca mais sangrará, seremos vivos enfim, não saberemos o resto.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Gramado - RS
agora
ou antes – não me lembro –
Gabriel dizia alguma coisa sobre as galinhas d’angola
servem pra comer formigas cobras escorpiões marandovás
e eu dizia como um bicho pode ter coragem de comer marandovás, hem?
(e
a propósito
o que são marandovás?)
Gabriel me explica são umas lagartas grandes e peludas
vi uma dessas numa árvore outro dia
e Gabriel em quatro anos só viu uma cobra e nunca viu escorpiões mas disse é bom
saber que pode aparecer um bicho desses e a gente vai estar protegido
nunca se sabe né nunca se sabe
isso é pra lembrar que num lugar nunca vão existir só coisas boas
e eu falei eu sei eu sei mas me deixe dormir mais um pouquinho aqui na rede
acho que isso foi antes
ou depois
ou talvez esteja acontecendo agora, então
o dono da estalagem
me chamou pra falar com a Cristina ao telefone
mas tanta coisa aconteceu que eu quero bagunçar um pouco as coisas
e dizer antes de tudo as flores são lilases
e o sol está queimando as costas do meu pé
e ontem eu queria comprar uma biografia do Kurt Cobain
cujo título é mais pesado que o céu
e ainda ontem
eu disse à Cristina vamos nos encontrar na praça
mas ela não sabia qual praça
então
o dono da estalagem
na porta da recepção acena com o celular
estou descalço
mas não dá tempo de calçar meu bamba
(mentira
quem é que tem coragem de usar bamba?)
e vou descendo assim descalço pelas britas
e ele diz é bom andar descalço nessas britas o cara fica com o pé todo doído
aí eu dou uma risada envergonhada igual à da minha filha
porque me sinto com uns onze anos
embora a minha filha tenha treze
e eu quero explicar
eu tinha uns quatro anos quando vi um filme do Mogli e ele andava assim nas
pedras e eu jurei que ia ser igual a ele
mas
talvez
talvez fosse melhor eu simplesmente ter descido pela grama

hoje
tentando dormir na rede
ou antes ou durante, em mim
havia uma batalha feroz e cada vez mais sangrenta
entre o instante e a literatura

no café
tinha um casal de cariocas que me entediou com uma conversa boba
deslumbrada e decorada do roteiro de um guia turístico
sobre o mofo do queijo ou sobre o vinho ou o chocolate ou sobre
depois perguntaram ao dono da estalagem
apontando pela janela se aquele ou aquele pinheiro era macho ou fêmea
e tome mais conhecimento repetido do seu guia
mas o dono da estalagem disse me desculpem
só sei dizer qual deles dá pinhão
– e com isso conquistou o meu respeito eterno

agora
antes que seja tarde
eu tenho que tomar um banho depressa porque
vou me encontrar com a Cristina
no saguão do hotel em que ela está hospedada
pra que ninguém erre de praça

e
só pra constar
são dois tons de azul
na igreja cujo sino
eu ouço da minha cabana.


sábado, 11 de novembro de 2017


(Diários de Machu Picchu #02)

– Tava brava por quê?

– Esquece.

– Não é melhor resolver?

– É melhor esquecer.

Ele observa em silêncio. Pensa. Procura a melhor forma de expressar seu receio.

– Não sei se você é assim, – começa, – mas eu, por exemplo, às vezes guardo umas coisas pra daqui a uns dez anos, mais ou menos, aí a gente vai estar numa briga nada a ver e eu vou dizer: “Porque daquela vez você fez isso, isso e aquilo”...

E ela, tranquila, decidida:

– Então deixa pra essa data.

sábado, 4 de novembro de 2017


Um menino sentado em um canto do quarto. Os braços ao redor das pernas, a testa encostada nos joelhos. O quarto é muito grande, não se pode ver o teto. Os móveis parecem desproporcionais, ou muito maiores ou muito menores do que deveriam ser. Não há janelas. Talvez haja uma porta, mas só se pode ver daqui as duas paredes em que o menino tem as costas apoiadas. Ele não chora. Ele não dorme. Ele só está ali, parado, como se se mover fosse inútil ou doloroso demais.

Agora há uma menina sentada à beira da cama, de frente pra ele. Os pés da menina não alcançam o chão. Ela usa uns sapatos brancos de boneca, meias três-quartos, uma saia azul de colegial. Parece preocupada. Mas não o vê. Talvez o quarto seja dela, talvez o menino tenha sido uma forma muito estranha de começar uma história que sequer é sobre ele. A menina tem vontade de adiantar o ponteiro das horas, mas então se dá conta de que no quarto não há relógios. Havia – até o instante em que ela quis adiantar os ponteiros. Depois era tarde.

Um bando de andorinhas atravessa uma das paredes e voa em linha reta até desaparecer do outro lado do quarto.

– Você viu aquilo? – pergunta a menina.

Por um segundo, o menino tem a impressão de que ela se dirige a ele. Mas então ela responde a si mesma com uma voz de boneca:

– Vi, sim. Eu disse pra você que isso não era uma parede azul. Eu sempre disse isso.

O menino tem vontade de quebrar o relógio. O menino tem vontade de fazer com que o relógio volte a existir pra que ele possa quebrá-lo. O menino tem vontades impossíveis. O menino desistiu de ter vontades.

– Mas por que – pergunta a menina – eu vou ficar aqui agarrada a você em um quarto que só finge ter paredes?

– Talvez a parede tenha ficado ligeiramente alaranjada – comenta a boneca, parecendo assustada.

A menina percebe que está presa em um cubo mágico. Percebe as mãos gigantescas que movimentam o cubo; percebe, de relance, por entre os dedos daquelas mãos, um par de olhos vermelhos e obstinados. O cubo é sacudido com raiva, e no instante seguinte está sendo arremessado pra longe.

Tudo some no momento em que o menino ergue a cabeça e olha em silêncio pra menina, com uns olhos tristes e profundamente azuis.

– O cubo ia afundar na areia movediça – conta.

De repente, o quarto parece sóbrio como um escritório. Tudo em perfeita ordem, iluminado apenas por uma luminária branca sobre a escrivaninha. A mulher procura desesperadamente por uma janela. O homem fecha os olhos, apoia outra vez a testa nos joelhos.

Longe, muito longe, ouve-se o ruído seco e melancólico de uma cidade desabando.


sábado, 28 de outubro de 2017


como amar um mundo que te despreza? como amar um mundo que te adora? como amar um mundo que nem sabe que você existe? como amar o mundo dia a dia com o mesmo amor, o mesmo mundo? como amar? como não amar? como?

sei qual erro eu cometi e não é o que você está pensando
todos os dias tenho arrastado culpas
todos os dias sou ameaçado pela indiferença dos fatos
você precisa ver sangue
e eu não tenho as defesas necessárias
contei os tiros e não sei por que ainda é em mim que estão mirando
ninguém virá recolher os pedaços
o que eu perdi já está perdido pra sempre
entendo o que você quis me dizer sobre termos sido privilegiados
sei que o meu soluçar de dor não vai virar um grito revolucionário
mas eles jogam fora o pólen por causa de espinhos
e eu não quero mais ter que pedir perdão todas as vezes que floresço
todos os dias peço perdão
todos os dias tenho esperado
quando foi a última vez que nos sentimos benvindos em nosso planeta
quando foi
a última vez que vimos nosso mundo descansar sem medo ou raiva
percebo os excessos
também sinto falta
ninguém virá gerar em nós uma virtude que nunca tivemos
estamos por conta própria agora
e não é uma pena que a crueldade esteja vencendo a guerra
pena é que existam guerras
a crueldade é só a única forma de vencê-las

quinta-feira, 19 de outubro de 2017


Vozes murmurando a guerra, vozes aéreas ignorando a guerra, vozes de guerra todas elas, e um barco bêbado embalado pelas vozes//

Um tremor de terra e (do meu colo cai o livro que deixei mais uma vez pela metade e não retornarei a ler) covardes que nos querem segregados | nem a cor, nem a conta, nem aquele a quem eu rezo, e mesmo que eu não reze nada, nada disso eu sou | /vocês são muito chatos só isso//

Porque acabei dormindo no capítulo sete) atravessar desertos de poeira vermelha e | COLAPSO \ do que você tem tanto medo\ não adianta nada você ter//você perdeu, filho\ você já perdeu tudo.

Gota. a. gota. assistia a isso enquanto fechava os olhos e não sei bem se chorava ou se choveu mas Tanto amor desperdiçado e Por que vocês chamam de vencedores esses imbecis Por que vocês precisam tanto de um vencedor Por que esses imbecis?

Sssuave bomba.

(No meio da página 44)


sexta-feira, 13 de outubro de 2017

mandaram assassinar um ideal
custou sete balas
três no peito
três na testa
e uma de promessa
pro primeiro que dissesse o nome dele depois disso


as flores que saíram voando o mel que brotou do verso um sopro de brisa fresca no verão do norte inspirado lentamente por um corpo exausto uma fonte oculta

uma fonte oculta

atravessa em silêncio o campo minado o fogo cruzado o vasto deserto rochoso das almas do curve-se-à-verdade-única-e-maior-que-tudo

e é tão convincente a ilusão de se curvar e de assentir

jamais subestimando a ignorância dos controladores

mas sob as vestes pesadas leva o contrabando

o suco das frutas mais doces sete cores impossíveis de arco-íris inventados um punhado de sonhos invadindo as praias da manhã e trazendo de volta das profundezas a última esperança náufraga que ainda vive

sábado, 7 de outubro de 2017



Vem me ver com esse sorriso, derrete o meu coração de pedra fria. Dessa alegria que é um mar interior, passeia a mão no meu rosto e me despe de todas as máscaras. Noite morena da noite mais quente e mais quieta, delicada união insolúvel, deita ao meu lado de olhos abertos, derrama no ar esse abraço para muito além do corpo. Vem devagar, vem me encontrar na tua boca. Nada é capaz de perturbar nossa calma. Nem aplacar a fúria ou preencher o abismo ou enxergar nas trevas que, tudo arrancado de nós, serão os muros entre nós e o mundo. Sobra aqui dentro a vida – renovável, limpa, luminosa. Somada e multiplicada, teremos o bastante para muitos séculos.

sábado, 30 de setembro de 2017


Alguém me disse que San Pedro de Atacama tem “a maior concentração de bichos-grilos por metro quadrado do planeta”.

Já estive aqui antes, nesta mesma lanchonete com mesinhas na calçada tomando o mesmo café com chantilly e sorvete de baunilha. Que fica bem melhor depois que o sorvete derrete, diga-se. Tive sonhos confusos à noite, sonhos pesados, sérios, agora há uma porção de casaizinhos correndo de mãos dadas pela praça e bebês e cachorros e um céu exageradamente limpo. Bem ao longe, uma dorzinha de cabeça, e olha que eu nem bebi tanto assim ontem à noite, pelo menos não tanto quanto os outros do albergue. Aconteceu que um povo me chamou pra jogar baralho antes de dormir, um jogo legal que eu não conhecia e que aprendi bem rápido, mas em que não me dei muito bem. Tínhamos que conversar em inglês e achei isso difícil, agora já não lembro mais nada das regras do jogo nem como se fala valete de espadas. Era uma gente vinda de vários lugares, Austrália, Irlanda, sei lá mais o que, então tinha uma mistura interessante de sotaques. E a trilha sonora também estava ótima, tocou várias músicas do Pink Floyd e cantamos juntos uma porção de outras coisas como Father and Son e Blowin’ in the Wind. Depois dei um bom tempo sozinho perto da fogueira, aí fui dormir tarde e confortavelmente bêbado.

Queria ficar sem fumar hoje, mas não me animei a enfrentar isso no meio de uma ressaca, mesmo que uma ressaca leve, então a primeira coisa que fiz quando saí pela manhã foi achar um lugar onde comprar cigarros. Um maço de cigarros aqui custa bem mais do que no resto do Chile, e quando o cara me falou o preço, fiz uma careta e perguntei “Por que tão caro?”. Foi bem mais pela surpresa do que reclamando, só que ele não entendeu assim, fechou a cara e disse “É este o preço. Se você não quiser, não compre”. Sempre levo um tempo pra perceber quando alguém está sendo grosseiro comigo, e neste caso, quando percebi, só lhe dei as costas e saí sem dizer mais nada. Sinto muito. Sem paciência pros homens e suas maravilhosas máquinas registradoras e todos os seus eternos passatempos bélicos. Acabei pagando o mesmo preço em outra venda, claro, mas dessa vez rolou até uma troca de sorrisos e obrigados. Tão simples, minha gente. Saí de lá e vim direto pra esta lanchonete, beber o café gelado que eu me lembrava de ter gostado da outra vez em que estive aqui. Tranquilamente. Pelo menos enquanto a minha mesa ainda estiver na sombra.

Agora tive que fazer uma pausa nas anotações porque passou por mim um casal de cinquentões brasileiros que eu conheci no albergue e que vão começar hoje mesmo sua viagem de volta. Os dois são professores universitários em Ubatuba – ela, de História; ele, não lembro. Anotaram o e-mail deles num guardanapo. “Pra quando você for a Ubatuba”, disseram, e me prometeram que eu poderia ficar na casa deles e que até me emprestariam uma das pranchas de surfe que eles têm em casa. “Vocês surfam?”, perguntei, animado, como se fosse a coisa mais natural do mundo, mas eles reviraram os olhos como se eu tivesse feito uma pergunta estúpida. Tudo bem. Acho muito difícil que eu vá a Ubatuba e não sou o maior fã de surfe, mas vá lá, guardei o e-mail com carinho e voltei a estas anotações já bem mais feliz do que quando comecei.

Depois passou um menininho de uns cinco anos falando sozinho. “Setecentos mil”, ele dizia, parecendo impressionado. Quando viu que eu estava olhando, balancei a cabeça e disse “Não. É muito”, mas nem sabia do que ele estava falando, falei só de brincadeira. Ele abaixou a cabeça e passou por mim em silêncio, aí um pouco mais adiante parou, virou pra mim e estendeu a mão cheia de moedas. “E quanto eu tenho?”, perguntou.

Contei setecentos.


sábado, 23 de setembro de 2017



Alguma coisa te escapa

Tua opinião é uma gota de chuva caindo no oceano, melhor não olhar.

Aquele rapaz oriental que acaba de sair do prédio é um traficante de antiquadas justificativas para o ódio e vai pegar um táxi para encontrar amigos no shopping, o taxista sorri pelo retrovisor e deseja boa tarde e começa a comentar sobre os milhares de poetas fuzilados e finais de campeonatos, aqueles cartazes de milagres industrializados, você não pode abraçar todos os que estão morrendo na Síria ou passando fome na África, ainda existem os que acreditam que a Terra é plana e os que deixam suas crianças adoecerem por duvidarem de vacinas, uma menina acaba de se encontrar com um pedófilo em um alegre e colorido e confortável mundo virtual, aquela mulher atravessando a rua é humilhada diariamente por gostar de astrologia e carrega um copo de café Starbucks e pensa em terminar com o namorado hoje à noite mas depois do sexo, esvaziaram-se todas as explicações para o altruísmo, você não pode saber e não é porque é segredo mas porque você não é capaz mesmo, aqueles que se jogam do alto de montanhas numa bicicleta e moças que se prostituem para sustentar o vício em drogas e moleques arrogantes mandando bordar "doutor" em seus jalecos caros, um velho se debruça à janela e vê, pombos cagam em para-brisas e casacos e canteiros e nos bancos das praças, nenhum controle remoto pode alcançar os que não ligam, arranha-céus de vidro e nomes de furacões e colecionadores de discos de vinil, toda essa desengrenagem, libélulas e sites de notícia e bares em que se fala mal dos negros e choveu no fim da tarde e lilases e tudo o que passa, tudo, quantas senhas você tem, o que você pensa que é sorte.

Não por eu estar sentado aqui sozinho com as mãos cobrindo o rosto, mas a solidão de um homem é uma lágrima no meio do oceano.

(Ou talvez isso não importe nem um pouco agora que somente os sádicos são adorados.)

sábado, 16 de setembro de 2017


Nada, confesso: não tenho nada pra te oferecer. Ou este vale de poemas ou as pontes pra longínqua nebulosa em que fui feito. É impossível prever o que vai resultar do nosso encontro, e minhas mãos procuram as tuas por vontade própria. Não conheço ninguém mais desinteressante do que eu. Você vai me ver falar com plantas, bichos, objetos, paisagens. Penso em você na minha cama e tua pele me leva ao delírio. Muito cedo você vai se entediar e me deixar por um motivo banal. Não sei inventar alegrias. Não sei improvisar interesse. Tenho vergonha da poeira sobre os móveis, pilhas de papéis amassados, a pintura descascando, não esperava te encontrar tão cedo. Tua imagem me desperta e já começo a ensaiar qualquer assunto, mas sempre me parece que devia ser outro. Não tenho nada pra te oferecer. Ou os campos minados da minha ingenuidade explodindo em flores alaranjadas.



(Ou azuis, se você preferir.)