quinta-feira, 26 de abril de 2018


Aceitei o copo de aguardente que o casal simpático me oferecia. Fui me sentar ao lado deles no cercado de concreto de um canteiro, Alonzo e Clarita, hippies que estavam na cidade de passagem e no momento bebiam acompanhados por Diego, morador dali mesmo de Tilcara, norte da Argentina. O sol começava a se por e o vento ia ficando cada vez mais gelado, enquanto se armava uma feira noturna ao nosso redor, na praça. Tinha conhecido o Diego mais cedo a caminho da Laguna de los Patos, agora ele me reconheceu e perguntou se eu tinha gostado do passeio, o que me fez parar pra conversar com eles. Alonzo disse que não gostava da lagoa, que lhe parecia só uma poça grande, mas que tinha gostado muito das Cuevas del Wayra e do sítio arqueológico de Pucará. Eu tinha visitado Pucará também, e de fato, tinha gostado muito. Era um povoado pré-hispânico muito bem preservado e cheio de placas informativas com conteúdo interessante – como por exemplo algo sobre antigos rituais em que se usava cebil, uma planta alucinógena. Foi sobre isso que perguntei ao Diego antes de me estenderem o copo de aguardente, mas ele apenas sorriu – e essa foi a única resposta que me deu a respeito da tal planta.

Por outro lado, acabou falando bastante sobre os nativos da região e sua relação com a terra, seus pontos de culto e sua cosmologia. Deu praticamente uma palestra, apesar do álcool enrolar um pouco sua língua, às vezes, e de muitas mudanças de assuntos e momentos de pura diversão. Clarita estava o tempo todo fazendo interrupções sem sentido, comentários absurdos do tipo “Eu sou uma quase-louca que ficou no meio da fonte”, e sempre que isso acontecia, Alonzo balançava a cabeça olhando pra ela e dizia “Você está fora da órbita”, depois dava mais um gole generoso em seu copo de aguardente. Não lembro exatamente como a conversa chegou a questões de certo e errado, limites, culpa, só sei que a essa altura já tínhamos começado uma segunda garrafa. Diego defendia que todos os limites e juízos são abstrações, que só existem na cabeça da gente, e que tudo é permitido nos desejos e na imaginação: internamente somos absolutamente livres, nem tinha como ser diferente.

Não lembro quanto tempo durou o assunto e se ainda estávamos nele quando um artista ambulante tocou Let it be numa flauta de bambu, mas a conversa se desenrolou até questões mais puramente religiosas, acontecimentos sobrenaturais e entidades do tipo Exu, que bebem, fumam, falam palavrão e não se constrangem de dizer que fazem tanto o bem quanto o mal. Citei uns nomes de Exu que eu conhecia – Tranca Ruas, Caveira, etc – e expliquei mais ou menos o que ele significava na Umbanda. Alonzo, atento à conversa, mencionou o medo que os cristãos sentem de entidades como essa; aí o Diego, arregalando os olhos, olhou pra ele e disse:

– Pois se eu sou cristão, suponho que acredito em Deus. E se acredito em Deus, então o que existe pra ter medo?

Isso encerrou a discussão, ficamos todos pensando sobre o que ele tinha dito. Clarita dançava entre os músicos, rindo como uma louca completa, e agora a praça estava muito cheia de cores, luzes, sons. O ar gelado fez com que eu me perguntasse se nevaria por lá, e em seguida considerei o fato de que a região era bastante seca. A embriaguez se afastou um pouco e deu lugar a uma sensação recorrente desde que eu tinha chegado a Tilcara: um certo assombro pelo quanto a paisagem toda me era familiar. Deduzi que eu tivesse morado ali em uma encarnação anterior, só podia ser isso, na hora achei que era indiscutível. E parecia que nada no mundo fazia mais sentido que adorar um deus do sol, um da montanha, um do vento...


domingo, 22 de abril de 2018


Nascemos em violência, arrancados, expulsos, com violência aprendemos a andar, num desafio ao chão, da nossa força se fez a estrada, o trigo antes do pão, a pedra antes do abrigo, da minha luta eu fiz crescer sete filhos, mais quatro que ficaram no caminho, por violência atravessamos a vida, amamos, sofremos, em violência deixaremos a vida, há violência em que sejamos esquecidos, há violência em que não sejamos, no que não atende à nossa vontade, em ter vontades, é violento existir, quando alguém mais se dá o direito de violentar nossa vontade, é violento resistir, é violento que tenhamos perdurado.

- tortillas, señor?


no, gracias, pero...
vivir acá.
el horizonte aplastador y tragado por las rocas de tilcara.
casas de piedras.
puertas coloridas.

quarta-feira, 11 de abril de 2018


(comece pelo 2o parágrafo, volte para o 1o e depois pule para o 3o e siga adiante)

- como aquele menino é parecido com o Fabiano, e aquela moça é igualzinha à Cristina quando tinha dezesseis, e que saudade da Cristina aos dezesseis, e do Fabiano, e de todos os passados bons que tive, e de outros que inventei, saudade que às vezes é um sopro suave já passa, às vezes é ter o coração arrancado a unhas às seis horas da manhã, quando o despertador toca. <///>

- etapas da cidade, a cor do céu sobre o asfalto em ruas comerciais e residenciais várias quadras de cima abaixo aquela distância do horizonte no Planalto Central meio verde meio já Goiás e meio ainda DF. Semanas inteiras pensando em cachoeiras de Pirenópolis ou da Chapada, aquela água fria no verão sem chuva, Jardim Céu Azul, uma igreja em construção da poeira vermelha, o fim da linha de um ônibus, apenas uma quarta-feira. Aqui teu sonho é muito branco, muito burguês – imaginei que diriam os olhos daquele menino, e como aquele menino é parecido com o Fabiano...

<///> – Aqui é a Terceira Etapa? – perguntei. – Céu Azul? – O menino me olhou com uma cara que parecia que era um raio x com um detector de metais e de mentiras mais uma investigação completa da minha vida, e tudo isso só me olhando.

Dez horas da manhã e eu me lembrei do jeito que a Cristina cantava Asa Branca.

Este planalto é o sertão, longe demais de tudo. E eu gosto, não gosto, não entendo. Aquela praça ali parece uma de Porto Alegre, aquele prédio parece um outro em que eu morava em BH. Aqui meio que é todo mundo estrangeiro, mas meio que nem todo mundo é. O horizonte grande demais também oprime às vezes; estranhos familiares ainda são estranhos; nem tudo são cartazes de boas-vindas. Tenho que caminhar talvez mais alguns quilômetros, e faz muito calor, mas o menino confirmou que estou no bairro certo – meio resmungando, sem desfazer a expressão de desconfiança, mas confirmou. Jardim Céu Azul em Valparaíso de Goiás, no auge do verão. Algumas ruas acima, estarei no Distrito Federal, hoje só um palco de comédias tristes com roteiristas esnobes. No calor do cerrado. Tão no centro de tudo, dentro demais de tudo. E ainda. Tão. Longe.

(Diários de Machu Picchu #23)

sábado, 7 de abril de 2018



Na casa vazia, o vento era a voz de Verônica, até meio quente, escorrendo na concha do ouvido. Falava em filmes do Fellini, versos do Ginsberg, coisas que eu não entendia, coisas que eu entendia bem, coisas que tanto fazia escutar ou não. Às vezes vinha com o Vinícius, quase sempre com um vinho, às vezes com um bom livro ou um bom som. No silêncio da casa vazia, a solidão parecia a presença de Antônia ou de seu filho Felipe, ou de Manfred, o cão, ou de Marina meia beba atirada no sofá da sala, e tantas outras vidas que se misturaram com a minha, mais todas as que não se misturaram nunca, ainda que estivessem lá, bebessem meu café. Na casa já velha havia o vazio que vinha então com cara de menino, só pra jogar um videogame ou pra brincar com Manfred, o cão, sempre às segundas e quintas-feiras perto das cinco, quando voltava da escola, e me dizia do seu amor platônico pela afilhada de uma prima minha, e acreditava em quase tudo que lia na internet, mas não gostava de ler, e ficava comigo muitas vezes até quase a hora de dormir. E tinha um vazio que não cabia na casa, a falta dos tempos de Maria Luiza, Maria, querida Maria que se espalhava tanto pelo espaço e pelas horas, tanto, tanto que agora não era nem possível que já não estivesse mais ali em lugar nenhum, nem mais um pedacinho de Maria, vazio que não podia ser, mesmo que um vazio assim, a olhos vistos.