sábado, 29 de julho de 2017


um estrangeiro atravessando a multidão em festa a noite colorida e calma do Médio Rio Negro, as conversas cotidianas espalhadas num cenário novo as barraquinhas de pastel de algodão-doce e bolos bandeirinhas de São João cobrindo a rua, um quadro singelo vendo os séculos ruírem, nunca mais a gravidade das filosofias e literaturas, por que elas nos afastam tanto assim da vida a vida a vida,

solitário ele vai quase de outro mundo, aprende os gestos e palavras só de olhar, mergulhado no ser-outro, o estrangeiro avança entre boas-noites e sorrisos de boas-vindas, queria ser um descendente indígena e tem um nome e cara e hábitos tão europeus, o é-assim-que-tem-que-ser que não lhe serve mais querendo dançar junto na quadrilha, querendo se casar com aquela moça,

vê correrem lado a lado uma desilusão profunda e um estar perdidamente apaixonado, ou são crianças acordadas até tarde, os pula-pulas e balões de gás hélio,

o estrangeiro tenta, erra, acerta sem saber, aprende,

os sons a música as risadas no salão a embriaguez desenrolando as horas madrugada afora enquanto lá fora o ar é renovado pela selva, onde e quando será não ser mais estrangeiro, como e com quem será, a ilha de incerteza em meio à festa arrisca um passo de dança e ri sozinha, até que nem tão solitário mas inteiro ali, na única realidade que interessa, ah sim, aquela.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

A imagem se repetiu já tantas vezes na minha cabeça. Não lembro se era uma cena do livro ou só de alguma das adaptações pro cinema, ou se fui eu que inventei. O Corcunda sobe bem alto em sua Notre-Dame com Esmeralda desacordada nos braços, lá embaixo uma multidão enfurecida. Ele a levanta acima da cabeça e grita "Santuário", garantindo assim que ninguém faça mal a ela. Fico fascinado ao pensar que então ela está protegida não por uma muralha de pedras, não por um exército, mas por uma ideia. Ela não será tocada, e não porque ninguém possa alcançá-la, mas porque não devem. Santuário. Nenhum mal pode entrar aqui. Simples assim. Santuário.
Santa Isabel do Rio Negro - AM
o mundo escapou entre seus dedos.

me deixe dormir.

“é um absurdo o que estão fazendo com o meu dinheiro o meu o meu o meu”. “namore com alguém que saiba se teletransportar”. “não fale assim com seus superiores”. “veja aqui como se comportar em cada uma das diferentes situações do dia a dia”. “ligue os discursos no piloto automático e responda sem ouvir”. “a culpa é da vilma”. “beba coca-cola experimente as novidades e não fume”. o mundo está ficando chato pra quem. me deixe dormir. não é pra mim.

sua opinião morreu de velha.

só mais cinco minutinhos.

quem te ensinou a fazer arte com a cabeça da mutuca. histórias reais sobre a curupira. parece milagre quando a malhadeira vem cheia de peixes. nunca tinha ouvido falar em irapuca. chibé. segurar na mão pela primeira vez uma paquinha. conhecer o gosto do taperebá. mira será indé? mira será indé? você é gente?

sei que lá fora os espelhos não bastam pra se ver as muitas doenças desta era.

mas só me deixe.

quarta-feira, 12 de julho de 2017



enquanto você passa invisível diante dos olhos deles. eles, os que te jogam pra fora sem te ouvir, pra quem a tua dor é nada, até que estoure uma guerra até que os filhinhos deles sangrem até que a raça humana seja varrida da face da terra não espere compreensão dos que estiverem se fartando em um banquete, nenhuma compaixão por trás de vidros blindados, te estenderão a mão os banidos, os humilhados te erguerão da lama, enquanto você cai e é engolido por insetos cegos ao redor de uma lâmpada imunda, eles, aqueles que você enriquece com o suor do teu trabalho cuspirão enquanto gargalham, farão com que você implore sob seu descaso, até que a violência vença eles só falam essa língua não espere piedade dos que podem comprar exércitos, só os que sangram cuidarão das tuas feridas, só os que já secaram colherão tuas lágrimas.

segunda-feira, 3 de julho de 2017



Dormem os senhores da Terra assustados e frágeis carregados de mortos, dormem vulneráveis milionários e reis, um sono soterrado por drogas ou em progressivos pesadelos sísmicos, ou convencidos de sua grandeza dormem o seu sono de cegueira e sonham trevas com seu peso em ouro, ou realmente grandes rezam sua pequenez e insignificância e dormem esquecidos, assassinos cruéis fecham os olhos e conseguem silenciar as suas consciências carregadas de mortos, dormem vulneráveis todos os sádicos e sátiros, ególatras de todas as espécies e homens-ratos e mulheres-ratas dormem e robôs programados pra engolir todas as almas, e juízes e soldados e senhoras e senhores comuns apenas batalhando o pouco pão de cada dia dormem dramaticamente vulneráveis e ninguém ninguém ninguém nunca esteve
nem estará completamente a salvo
até que Deus
ou uma bala
ou qualquer outro detalhe
ou nos acabe
ou nos acorde.