quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Numa daquelas noites, teve um eclipse da lua.

A gente foi ver juntos na praia do Porto da Barra.

Quando encontrei Eva em Salvador, achei que aquela poderia ser, talvez, a última vez que nos víamos. Ela estava lá a trabalho, mas tinha bastante tempo livre, e passamos boa parte dele visitando pontos turísticos da cidade ou simplesmente caminhando pelas ruas como nos velhos tempos. “Em frente até não existir mais ‘em frente’?”, brinquei, numa dessas caminhadas, achando que ela embarcaria no que era uma subversão de um velho bordão nosso, mas ela pareceu nem notar, só deu um sorriso meio torto de canto de boca, muito mais cabisbaixa do que de costume. Seu novo trabalho começava a lhe consumir bem mais do que estava disposta a dar, e Eva andava com vontade de pegar a estrada de novo.

– Eu sinto um misto de pena e repulsa – ela explicou – por essas pessoas que vivem se agarrando desesperadamente a qualquer pequena oportunidade de ferir as outras. Coitadas, elas tem uma existência irrelevante, acham que precisam se sentir melhores que as outras e esse é o único caminho que elas encontram pra isso. Mas o pior de tudo é que não é só um padrão, não, o pior é que essa que é a regra do jogo, mesmo. Essas que vão ser as pessoas que vão “chegar longe”.

– Sim, porque faz muito sentido – falei, – quando o trabalho inclui se relacionar com outras pessoas, é melhor que você esteja competindo e tentando acabar com elas do que somando esforços pra fazer um bom trabalho.

Ficamos um tempo sem dizer nada, observando a lua conforme ela escurecia, em meio ao murmúrio da pequena multidão que se juntou por lá naquela noite. Então alguém perto de nós falou bem alto:

– É todo mundo Ph.D. em Ciências Passionais e Seletivas.

Algumas pessoas riram, Eva e eu não conseguimos conter um sorriso.

E tudo se dissolveu no momento presente. O ar era agradável, o mar continuava a arremessar aquelas suas pequenas e transparentes ondas contra a praia.

– Eu gosto de você, R. – disse Eva, de repente.

– Eu também, Eva. Gosto muito de você.

E a gente já não tinha mais nada pra dizer. Em poucos instantes, a lua estaria completamente encoberta pela sombra da Terra.

domingo, 27 de dezembro de 2020


 

Tinha uma festa na sua rua, mas ela estava lá porque era a sua rua, e não porque era festa, e tinha um ar meio que de ter sido roubada, de não saber mais o caminho de casa, de quem me via pela primeira vez. E foi assim: no instante em que me viu, me abraçou, demorou-se um pouco no abraço.

Não houve um tremor de terra, nem um arrebatamento.

Gesto comum em roupas de rotina. Gesto puro gesto, não mais do que abrir uma torneira e encher um copo com água, dar duas voltas na chave pra trancar a porta. Noite animada esparramada na rua, as crianças correndo as músicas maçãs do amor luzes da praça.

Talvez fosse o abraço mais melancólico da História, mas o momento engolia o que quer que se pudesse dizer a seu respeito.

Nem houve uma suspensão do tempo, ao contrário: era quase como se desemperrasse uma engrenagem.

A vida acontece, e acontece, e acontece.

A imagem, só ela se guardou. Mais uma pedra arremessada com displicência no rio, alterando sutilmente – e pra sempre – o curso de suas águas.


 

sábado, 19 de dezembro de 2020


 

Que eu quisesse ser outro e não este bandido que é um senhor da noite
e vaga sem rumo em todas as direções contrárias
faria com que o teu olhar se fixasse em mim
e brilhasse outra vez como o antigo mar das estrelas roubadas
por nosso medo do escuro?

Se em vez de te buscar em todas as mulheres que me escapam
ou despir continuamente a minha alma cada vez mais solitária
eu me jogasse aos teus pés e confessasse que não te pertenço
mas que ofereço todo o meu não-pertencer por uma vida de encontros
aceitarias finalmente que eu me acomodasse em nós?

Onde eu guardasse o meu ouro e meu temor de já não tê-lo
entrarias nua e vendada ao risco de ser feita prisioneira
de um amor desigual até que eu me livrasse dos espelhos
e só me quisesse em teu rosto – centro do meu universo
e tempo da minha história inteira?

Porque eu não fosse de rua e de tantos segredos
nem me lembrasse dos monstros que há por trás das máscaras
teria abrigo em teu corpo para ser só um homem
feliz e agradecido por haver chegado ao termo
que é o princípio e o caminho e nosso único propósito?

Como eu deixasse o silêncio e o vazio dos meus sentidos
para me embriagar do som estranho de uma vida a duas vozes
inventando um mesmo canto, deixarias também a tua descrença
para fingir comigo algum encantamento
que deveras nos encante?

Quando eu chegasse exausto e velho da jornada
feita de tantos não-ter-ido para ficar ao teu lado
te encontraria ainda presente nessa mesma esfera de delírio
no haver escolhido o mesmo passo ainda que não os caminhos
e além de ser e de estar, o ter inexistido em boa companhia?


 

 


sábado, 12 de dezembro de 2020


 

“O nome das coisas”, dizia sempre o Juruma, que era um negro adotado por brancos com aquele nome feminino indígena, mas o Bernardo respondia “O lugar de cada coisa”, e os dois ficavam em uma discussão interminável que pra mim não tinha nenhum propósito, até porque no fim das contas a gente acabava pedindo pizza no “Tem Pizza de Quê?” não porque o nome era engraçado ou porque ficava perto, mas porque era mais barato, só que eu nunca reduziria tudo a uma questão assim tão banal, “o preço de cada coisa”, ou talvez só pra perturbar ainda mais os dois naquela discussão tão chata, então preferia ficar quieto, ia escolher algum livro na prateleira, um disco, uma frase mais inteligente – pra mim tanto fazia.

“Quem vota no Glauber pra comprar mais vodca?”, acabei dizendo, e o Bernardo provocou, “Vamos comprar aquela vodca chamada Kafka pra ver se amanhã acordamos transformados em insetos”. Aí o Juruma se remexeu na cadeira e começou a discursar sobre o nome da nossa bebida, “Cuba-Libre”, que afinal misturava uma bebida russa e uma norte-americana, “não dava pra escrever uma tese sobre as leituras políticas desse nome?” Quis interromper pra dizer que a receita original de cuba-libre era com rum e não com vodca, mas naquela mesma hora reparei em livros de Maiakovski e Ginsberg lado a lado na prateleira e quase disse isso em voz alta, só não falei porque os dois ficariam me olhando com cara de “E daí?”.

Também ninguém parecia se importar com o fato de que o Glauber não estava lá, e que a pergunta tinha sido na verdade uma citação de um texto que eu tinha publicado em meu blog havia poucos dias e que tratava de uma situação parecida. Um texto que obviamente ninguém tinha lido. O que me chateava um pouco, é claro, mas afinal eu sabia que o Bernardo, por exemplo, não gostava da minha poesia, enquanto era um excelente amigo, ao mesmo tempo em que acompanhava o blog do vizionarios, de quem ele nunca gostou pessoalmente

Cada um falava de uma coisa e aquilo ia por caminhos tortuosos, vamos fazer um filme, sim, vamos fazer um zine, ninguém se lembrava mais qual copo era de quem ou qual carteira de cigarros, revistas em quadrinhos e revolução operária, cuba-libre com kafka, Juruma de repente cruzava as pernas e fechava os olhos parecendo um monge budista meditando, Bernardo prolongava algum monólogo sobre como a pós-modernidade e a globalização ainda veriam um retrocesso ao fascismo e a um nacionalismo depravado, eu lamentava o capitalismo, eu tinha ideias tão antigas tão à frente do meu tempo, eu planejava mudar o curso de tantas coisas.



(Diários de Machu Picchu #24)


“Ok”, rosnou Bernardo, “mas nada a ver Diários de Machu Picchu, nada ver um desenho que você só vai fazer daqui a uns dez anos”.

E ele estava certo, é claro, mas àquela altura eu já não tinha mais a menor condição de entrar em uma discussão metalinguística.


 

sábado, 5 de dezembro de 2020


 

deixar quem sabe algum ar em fotografias noturnas antes de morrer afogado um olhar à janela a falta absoluta de perspectivas – ainda se fosse só isso – aquele agora bruto e deserto demais pontilhado de luzinhas brancas dos apartamentos espalhados num interminável breu de tempestade e madrugada urbana entre os amigos tristes.

e se a alegria se pudesse transferir de uma alma a outra apenas por estar ali, talvez, amores, mas então me fala se a palavra alegria apenas tenta remendar a falta de palavras pra algo assim entre a satisfação e a fúria e não estar pensando em nada – sim, se eu fosse esse poeta, se uma palavra assim digamos jambo só por ser ouvida fosse um gosto na tua boca eu te daria logo um cacho.

“algo se perdeu pra sempre”, resmungávamos – agora nos ocorre que não poderia ser perdido o que jamais esteve lá, ou só fotografias de ausências, memórias que não eram, mas também há muito neste mundo que só pode ser visto mesmo assim meio que não vendo, como elétrons, ou como a barra da túnica de deus.

deixar quem sabe as possibilidades.


 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020


 


 

Tem horas que poder ir pra qualquer lugar se transforma em sensação de não ter pra onde ir.

Tem horas que você espera um ônibus igual a todos os outros numa rodoviária igual a todas as outras pra conhecer um lugar diferente igual a todos os outros.

Talvez você não tenha mais a menor ideia de qual dia da semana é hoje, mas mesmo assim tudo caiu numa rotina sem propósito.

Avançamos? Sim, mas muito, muito, muito lentamente.

Com uma bagagem que já não parece tão pesada – talvez porque a gente acostuma, talvez porque você esqueceu alguma coisa na última hospedagem.

Tanto faz, porque você já nem se lembra mais de tudo que trazia na bagagem.

Você precisa, já passou da hora, mais do que qualquer outra coisa você precisa encontrar logo o que está procurando.

Nem que seja a serenidade de aceitar que o que você está procurando não existe.

Ou foi o que você esqueceu na última hospedagem.


 

sábado, 21 de novembro de 2020


 

“É logo ali”, alguém falou, horas depois eu estava no alto de alguma montanha sem conseguir enxergar onde a estrada acabava, sem nenhum sinal de habitação humana por perto, apenas uns poucos carros e caminhões que passavam a longos intervalos. Algumas vezes levantei o braço com o polegar estendido, outras, não me dei ao trabalho, distraído que estava com a paisagem, às vezes por estar me lembrando de alguém ter dito “É logo ali”. O sol ardia sem piedade, o mochilão começava a ficar desconfortável de carregar, mas a brisa no rosto, mas ser um homem sozinho naquele silêncio do meio do nada, com aquela paisagem, mesmo que agora a estrada parecesse ser maior do que eu podia alcançar, eu preferia ir a pé. E eu ia.

“Aqui por essas terras”, disse um homem sábio em uma das muitas caronas que peguei, “não dá pra levar ao pé da letra quando alguém diz ‘É logo ali’”. E isso depois de me informar que só poderia me levar até uma parte do caminho, e antes de uma longa viagem que incluiu quatro ou cinco paradas pra colher frutas, ver algum rio ou dar um oi pra um conhecido no caminho. Desembarquei outras tantas horas mais tarde, em lugar nenhum, “Eu vou por esse caminho ali, você desce essa estradinha e [aqui começa uma série interminável de instruções com pontos de referência dos mais absurdos, voltas e voltas por encruzilhadas e porteiras e pequenas pontes feitas com troncos de árvores, sobe ladeira e desce ladeira, depois é logo ali], não tem como errar”.

No início da noite, eu me aproximava do meu destino acomodado nos fundos de um caminhão, um pouco da poeira da estrada ainda chegando até onde eu estava, mas uma visão perfeitamente limpa de um céu carregado de estrelas até quase as finas camadas de amarelo e vermelho sobre a linha do horizonte – e parecia que o sol tinha ido embora havia tanto tempo. Estava logo ali. Eu me sentia alguns amigos mais velho, alguns anos mais perto dos desconhecidos que me esperavam, mantinha os olhos bem abertos, registrando cada detalhe. Nenhum sinal de luz elétrica, nenhuma casa, nada. Respirei profundamente. Tudo, até o cheiro era azul escuro.







 

sábado, 14 de novembro de 2020


 



(ATÉ AQUI)
bravos irmãos
gentil senhora
menina gentil – brava menina e menino gentil
meninos irmãos
bravas mulheres e homens com seus gestos transparentes de acolhimento
copos de água pra quem tem sede
vento gentil à sombra a quem tem caminhado uma longa estrada
a palavra de entrega e presença
a voz clara
calmos guerreiros atentos e de atitude amiga
é uma existência já exausta
a que trago atrás dos olhos às portas de suas casas
eu o forasteiro
sem irmãos sem leis já quase sem vontade
bravas guerreiras
doces irmãos doces e bravos
queridas irmãs de meu coração sem amparo

todo este continente atravessei maravilhado e triste
constantes eternidades sendo gravadas a fogo no mais fundo da memória
tenho amado homens e mulheres de tantas músicas na fala
de tantas línguas nativas e estrangeiras por aqui espalhadas
mas não posso pertencer nem amo nada que acredite possuir o que seja
não reconheço autoridades nem haverá jamais governo que me represente
por todas essas terras amei e me despedacei partindo sempre
ouço ainda os lamentos
vejo ainda os povos tentando levantar exércitos
vejo ainda os povos que acreditam só estarem de pé graças aos seus exércitos
vejo os povos que tombam
tenho chorado mais que as águas deste rio que me trouxe
tenho chorado os rios que a ele se juntam até transbordarem o mar salgado
meus olhos mal conseguem enxergar de tantas águas
minhas mãos trêmulas já não suportam o peso da bagagem
meus pés se recusam ao próximo passo
estou sozinho demais em uma época hostil
e não tenho outra época

ouçam
não tenho mais amores pra cantar nem versos que me confortem
não há nada de mim sob meu nome e renuncio a tudo que ainda seja máscara
transformações bem mais profundas têm se desdobrado ocultas em minha alma
e eu tenho sede delas
me alegra que eu tenha chegado a este porto e que fossem vocês que estivessem perto
me saciam seus pães
seus amores suas vozes fortes quando me desejam boa tarde
vejam
meu corpo precisa de repouso
meus sonhos velhos querem se deitar às margens de suas matas
beber seus pássaros azuis
as flores vermelhas da praça

irmãos
rainhas descalças
elementais das ruas e do concreto
me abracem
me deixem ficar mais um pouco
é hora
de compreender com meu corpo
o que é jamais ir embora


 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

na verdade, eu esqueço de escrever legenda com aquele é o centro-oeste da Argentina, este aqui é o do Brasil, isto aqui é no interior do Piauí, na verdade, eu queria publicar o desenho de um cartaz que diz "m de marte h de vênus", ou um muro escrito "Basta de transfobia", na verdade, eu me perguntava quem vê tanta fotografia, lê tantas palavras, pensa no assunto, eu mesmo não entendo a guerra dos sexos assim como nenhuma outra, classe, cor, gerações, deus, diretor de cinema preferido, agora me pergunto quanto tempo faz que estou olhando pra essa folha em branco, tem personagens que não quero mais interpretar, raciocínios que não quero ficar repetindo, não me ocorre nenhuma boa história pra contar nem nenhuma grande ideia que valesse um manifesto ou sei lá, que se pudesse explicar em um texto pra teatro, Personagem entra pela direita, olha para o público e diz: Agora está tudo explicado, e olha que eu queria dizer logo toda a verdade, mandar a real, o papo reto, ou sei lá como se diz hoje em dia, como é que vocês falam por aqui, mas a verdade é que eu também queria uma metáfora, uma alegoria, uma porção de imagens abstratas pra esse reino abstrato que é também verdade e paira e não termina, este aqui é o interior da sua alma, nem tanto pela pretensão de um bom retrato, quem não abraça a falta de sentido acaba prisioneiro dela, o céu nunca foi limite, queria mesmo era publicar o mundo, às vezes até sem nenhum remendo, na verdade, tudo já foi dito e a folha continua em branco, como um abismo entulhado de tudo e nada, como uma colcha de silêncios em retalhos


 


 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020


 

Ainda rastejantes, agarrados aos livros de regras, desenhando seus rankings com o impulso infantil, mas vomitando teses, amontoados de palavras que se moldam às circunstâncias, convenientes, atribuídas aos deuses ou a qualquer grandeza arbitrária por trás da cegueira, desfilando a arrogância de se sacrificar por mentiras, a podridão de suas intenções mais puras, a lama escorrendo de suas consciências limpas, o demônio delicado e sorridente citando as escrituras.

A idolatria do confronto não bate palmas no portão, derruba a porta; não te pede um minuto pra falar sobre a intolerância, não tem livrinhos ilustrados com famílias felizes em seus mundinhos de gritos e agressões gratuitas, não pergunta se pode orar ou entoar louvores aos vencedores que nos desprezam, não convida a dar as mãos pra atirar outra pedra. Está em todas as mensagens, conforta com o seu humor destrutivo, embala o sono dos preguiçosos.

Seu pensamento de espuma, embriagado, não suporta por os pés no chão, vaga à deriva. Onde haveria encontro e realidade, onde pudesse haver uma prova concreta de estarmos juntos, um saber de estar sendo, há o borbulhar das bolhas virtuais e de avatares de desenho, as certezas encaminhadas de alguém qualquer de um qualquer grupo, a percepção amortecida por cliques. Agora algoritmos ditam os ritmos, a matemática de repetir o mesmo, no tom exato, o canto da sereia, as algemas, o vício de seguir alheio. E enquanto isso, a arte morreu no mercado, baleada perto do balcão das frutas, limões e pêssegos pisoteados, uvas, morangos, sangue de verdade.

Tenho ouvido as coisas mais lindas sobre o amor, mas por onde será que você anda a essa hora?

 


sábado, 24 de outubro de 2020


 

De onde eu estava, se olhasse em direção a Antero, podia ver tatuada em seu braço direito, em letra cursiva, a palavra “alhures”, embora eu não conseguisse ler àquela distância. Próximo a ele, um pouco à sua esquerda, estava a fonte do barulho constante que ouvíamos: as águas que despencavam em meio às pedras rumo ao Urubamba, lá embaixo, atravessando por entre as calçadas de Machu Picchu Pueblo. Eu estava confortável em um banco de madeira escura, e tinha a palma da mão direita virada pra cima a poucos centímetros da palma da mão esquerda de Ruth, que tinha a palma da mão direita virada pra cima a poucos centímetros da palma da minha mão esquerda, em um exercício que Antero insistiu pra que ela fizesse também comigo, depois de tê-lo impressionado tanto no dia anterior, e que ele agora retratava a lápis em seus próprios diários de Machu Picchu, perto do fim de uma tarde quente de segunda-feira.

Havia algo de muito familiar na voz de Ruth, assim como nas palavras, e uma profundidade tão grande em seu olhar que eu mal conseguia desviar os olhos. Uma transparência única, permitindo entrever o colorido assombroso de uma alma que se estendia pra muito além, misteriosa e ao mesmo tempo simples e direta, de longe uma das pessoas mais fascinantes que já tive a felicidade de conhecer. Seu exercício não era mais do que uma leitura de aura, mas feita por ela, realmente, impressionava até mesmo alguém mais acostumado a coisas do gênero, como era o meu caso. Apenas percebendo as minhas energias, Ruth foi capaz de contar detalhes sobre várias épocas da minha vida, desde a infância, segredos que talvez eu preferisse esconder até de mim mesmo, revoltas, mágoas, medos: ela não deixava passar nada, e aparentemente toda a minha história, pensamentos, sentimentos, até os menores detalhes, estavam impressos em meu corpo e minhas energias de forma que qualquer um pudesse ler.

Aquilo tudo mexeu comigo a tal ponto que eu mal consigo me lembrar do que aconteceu no restante da noite, só que, mais tarde, quando as coisas começaram a ficar silenciosas demais, não aguentei ficar fechado em meu quarto e saí pra caminhar um pouco, tentando arejar a cabeça. Eu me sentia pesado e tenso, discutindo em pensamentos com vozes do passado e de um presente indefinido, vendo sangrarem de novo feridas fechadas havia tanto tempo, e em poucos minutos de caminhada, atravessando o silêncio desabitado de um povoado mágico demais pra minha miséria humana, estava chorando e xingando baixo, como se pudesse me livrar de tudo apenas dando um fiozinho de voz à minha raiva e agitando os braços. E quando me sentei à murada de um canteiro alto, onde havia somente uma árvore não muito maior do que eu, o choro que eu chorava já era de outra espécie, mais um lamento sem força, um choro meio que de quem desiste.

Uma oração cansada. Um desabafo pra ninguém. Eu carregava o mundo nos ombros, remorsos, fracassos, derrotas consecutivas pra inércia ou dependentes do ódio, um padrão miserável e bestial de ser homem, por que, Deus, fizeste de mim poeta em um tempo assim? Então uma vida repetidas vezes desperdiçada, aquela solidão deserta de um vazio intergaláctico, se não fosse sempre só eu esquecido na noite, sem ter sido chamado, nem ouvido, nem muito vagamente alcançado.

Acho que já não chorava quando a silhueta de um casal apareceu sobre a ponte, mas o fato é que, mesmo de longe, estava fácil de ler o quanto eu estava abatido, ali cabisbaixo, talvez ainda resmungando alguma coisa. Os dois não hesitaram em vir me ajudar – não sei se já tinham me reconhecido, é bem provável que sim. Só fui reconhecê-los quando chegaram bem perto, mas nenhum de nós disse uma única palavra. Antero se sentou à minha direita, Ruth, à minha esquerda. Passaram os braços pelas minhas costas, encostaram suas cabeças em meus ombros. E ali ficaram, quietos. Por longos, longos minutos.

Então Antero disse Eu sou teu pai, e pouco depois Ruth falou também Eu sou tua mãe.

Aí logo em seguida ele falou Eu sou teu filho, e ela também Eu sou tua filha.

E por último disseram quase ao mesmo tempo Eu sou teu irmão, Eu sou tua irmã.


 


 

domingo, 18 de outubro de 2020


 


 

Não pense que agora é tarde
Podia parecer só um filme
Eu era aquele estranho caminhando na tua lua
Por que você não foge por uns dias vai morar lá em casa
Leva o violão
Tem dias da gente ser herói
E dias da gente precisar de um
Quero namorar com você desde menino
Não pense que agora é tarde
Eu lembro o que você sempre dizia
Quero ser esse caleidoscópio de te ouvir
A gente parte pro sequestro mútuo
A culpa não é de ninguém
Tem um céu que a gente ajeita como pode
E outro que a gente gosta assim mesmo bagunçado
Vem falar beijo de língua
Não pense que agora é tarde
Aperta o mudo a gente fala tudo sobre qualquer nada
Eu lembro que você gostava da palavra almíscar
O resto a gente aposta em sinais verdes no caminho
Todo o cardápio de delícias sensoriais e metafísicas
Tem dias que não tem herói
Mas a gente faz bolinho de chuva
Arrisco até um “sem fim”
Não pense que agora é tarde


 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020


 

como eu tinha que falar muito rápido e não sabia se você estava reparando o quanto eu mal podia acreditar que você estava ouvindo um pensamento que era um fiozinho solto e quando eu fui puxar desfiou tanta coisa que eu queria que você soubesse e nem sabia como se transforma em palavra que se entenda esse amontoado de um emaranhado de um bolo de um rolo de um novelo de um monte de coisas interligadas que a gente é




As duas foram se sentar ali porque gostavam de como podiam ter a ilusão de estarem longe da cidade ou daqueles tempos loucos em que viviam especialmente se alguém passeasse de canoa no lago mas também porque aquela era a melhor chance que tinham pra se ver durante a semana e tinham pouco mais de uma hora ela acordando pra encarar um turno da noite na farmácia e ela de passagem entre um lado e outro da cidade entre um emprego e outro entre uma angústia e outra mas naquela tarde as duas mal olhavam a paisagem distraídas que estavam com seus celulares e o wi-fi da lanchonete até que uma delas pegou do bolso um pedaço de papel rabiscou alguma coisa e entregou à outra


VOCÊ SE LEMBRA DE COMO ERA CONHECER PESSOAS 
ANTES DOS CELULARES E DA INTERNET?


como eu não tinha ideia do quanto faltava pra quem via de fora até que estivesse completa a imagem o sentimento a ideia cuja realidade reunia aquelas frases todas que iam como locomotiva eu achava que você só conhecia uma parte e parecia que se eu parasse então a própria essência de quem eu era se dissolveria assim de repente como se a voz fosse a minha substância e aquele conjunto pobre de sons espalhados no tempo algo que realmente manifestasse a totalidade da minha existência


 

quarta-feira, 30 de setembro de 2020


 

choveu mas tinha sol, e era uma sexta-feira à tarde e eu estava apaixonado e ela disse que também estava, e a gente ficou se olhando com aquela cara de quem não acredita em tanta coincidência, e eu me lembrei do que vinha a seguir e foi quando passou o carro do sorvete, e um gato veio se enrolar em nossas pernas, e o ar da praça era ao mesmo tempo alaranjado e prateado e tinha umas pequenas flores amarelas e vermelhas, e à noite ia passar um filme bom e alguém riu alto e tinha um cheiro de terra molhada e brisa fresca e úmida e suave, e era tudo ao vivo, e ela deu um passou à frente e parecia que a existência inteira flutuava através dela e nela e só por ela, e que ela estava em tudo e que era tudo ela e ela e ela e


 

sábado, 26 de setembro de 2020


 

Estive tentando reunir alegria suficiente
Ou graça ou glória
Pra escrever um poema de amor quase místico
Sobre a grandeza de tuas paisagens, cidadezinha
E da tua gente silenciosa
E das tuas ruas aéreas
Tua praça iluminada pra festa
Fervendo de fome e de frutas na feira
Estive tentando encontrar minha calma e a terra
Sólida sob meus pés pra sondar as beiradas de teus abismos
E as profundezas de teus rios
Dos corações inundados que aqui vivem
Ou vêm pra despistar cansaços
Tua lua cheia ao alcance das mãos, as milhares de mãos
Erguidas em templos de adorações tão diversas
Porque eu te amei quanto pude
Mais muito

quinta-feira, 17 de setembro de 2020


 

teu castelinho de história vai ficar bonito com mais essa postagem. distorce informações pra elas caberem no alerta: “eles são a causa de todos os males do mundo”. só um pouquinho aqui, outro pouquinho ali, estica e puxa e faz parecer que temos que escolher entre uma tirania e outra, as nossas com certeza são as melhores. o fato é que ninguém se relaciona mais com os fatos. não só os que sonham alto os paraísos interiores, também os que rastejam pelas ruas suas camisetas e bandeiras viciadas em só isso. mas ei não pare agora o teu castelinho de história está ficando lindo com todo esse combate heroico aos mais novos sintomas de doenças que ah deixa pra lá. toda essa guerra entediante e teatral e sem avanço esse chove não molha uma bola de neve estamos andando em círculos e o melhor que temos pro nosso próximo ato é repetir algo de antes. e se quiséssemos realmente melhorar o mundo? sei lá, só perguntando.


 


 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020


 


 

Conheceram-se no caixa de um restaurante, depois descobriram que tinham ambos o resto da tarde livre, então por que não, o rapaz conhecia uns lugares interessantes pra visitar ali perto. Mas não conhecia ninguém na cidade: tanto quanto Joaquin, estava lá só de passagem. “Ninguém gosta de mim”, repetiu algumas vezes com os olhos baixos, e Joaquin via algo de sua própria tristeza refletida no rapaz. Naquela época, trabalhava como representante comercial, tentando vender sucos de frutas que não nasciam a menos de mil quilômetros das cidades onde ia. Passava muito tempo na estrada e muito pouco tempo em cada cidade – e também não conhecia ninguém naquela, mal lembrava seu nome. Também tinha a impressão, muitas vezes, de que ninguém gostava dele.

– Vezes até demais – confessou.

E quando contou essa história, demorou-se, nesse ponto, em alguma lembrança silenciosa, os olhos perdidos por um longo instante, sem revelar mais nada.

Ele se chamava Martim, disse, afinal. Estava hospedado em um albergue ali perto e parecia bastante chateado com alguma coisa que tinha acontecido lá, mas não dava pra entender direito, ele falava sem parar e às vezes eram coisas sem nenhum sentido, repetindo o refrão “Ninguém gosta de mim” muitas vezes, vezes até demais. Mostrou o nome do ex-namorado tatuado no braço, teve que abaixar um pouco a calça e a cueca pra mostrar a tatuagem de pequenas e delicadas flores ligadas por um fio. Disse várias vezes que achava o Joaquin lindo, lindo, lindo demais pra estar solteiro, acariciava o seu braço, uma vez ou outra tentou segurar sua mão.

– Mas eu não me importava com isso – disse Joaquin. – Acho que até aquele dia eu não tinha me dado conta do verdadeiro peso da minha solidão.

Martim. Eles andaram juntos a tarde inteira, depois acabaram em alguma lanchonete tomando o suco de uma fruta que só nascia naquela região e de que Joaquin nunca tinha ouvido falar. Foi com o rapaz até o portão do albergue, deixou-o lá, despediu-se, já estava outra vez andando em direção à rua. Martim se sentou em um banco encostado ao muro, debaixo de uma árvore, e parecia mergulhado em sombras quando Joaquin se virou pra trás pelo que pensou que fosse a última vez. O rapaz escrevia em um caderno pra depois procurar por ele no Facebook, em letras garrafais: JOAQUIN. Ninguém gosta de mim, estava dizendo ainda, ninguém gosta de mim, ninguém gosta, ninguém. Por que você está indo embora? O que foi que eu fiz?

– Aí nessa hora eu fui até ele – contou Joaquin, – segurei seu rosto entre as mãos e beijei... não, beijei não... mordi seu lábio inferior.

Fez uma pausa, durante a qual perguntei:

– Mas por que você fez isso, Joaquin?

E ele:

– Ah, sei lá, pô... Acho que... Todas as frutas.