sábado, 25 de setembro de 2021





 

...





 


 


 

Hoje. Faltou ar. As queimadas, a gente via, quando passava pela estrada, campos carbonizados. Setembro no cerrado, o rastro da seca, o amarelo e o preto, hoje era sem respirar, nas cinzas. Cinzas turvam a luz. O fogo, as cinzas distorcem a luz, o fogo derrete as forças. Sem ar, sem mal poder ir. O sol se pôs na fumaça, bem antes de tocar o horizonte.

sábado, 18 de setembro de 2021



(Quatro palcos dispostos em relação ao público de modo que cada espectador seja obrigado a girar sobre seu próprio eixo para observar todos eles. Entre os palcos, tablados alternativos e telões projetando imagens de outros palcos, de modo que os espectadores não sejam obrigados a ficar girando para acompanhar o que acontece em todos eles, simultaneamente.)
PRÓLOGO

(Em um dos palcos, estão L e Pâmela; em outro, Karina; em outro, Ludo; em outro, Mano. Diogo está em um tablado alternativo e transita para o palco em que está Karina. Tudo o que Ludo e Helena falam no Prólogo é dito ao microfone, localizado no palco em que Ludo está inicialmente, mas nunca, em toda a peça, ele e Helena aparecem juntos. Para se trabalhar a musicalidade das falas, deve-se observar, ao longo de todo o texto, os momentos em que elas possam ser ligeiramente sobrepostas.)

PÂMELA: Você se lembra de como era estar presenciando um milagre?

KARINA: De novo! É a voz dela!

MANO: Milagre? Você ainda chama aquilo de "milagre"?

LUDO: Alô, alô. Som, teste.

KARINA: É ela, só pode ser. E falando em milagre.

MANO: Fala! Por que isso, agora? Você quer o quê?

LUDO: A. A. Som, testando, um, dois.

KARINA: Eu preferia até que ela não tivesse usado essa palavra. É horrível.

MANO: É me enlouquecer, que você quer? Aparece!

LUDO: Teste, som. Helena, você está me ouvindo? Alô, Helena? Um, dois, teste. A. A.

DIOGO: Isso precisava parar em algum momento.

LUDO: Eu ainda não consigo entender direito, eu não sei se eu acredito em você.

DIOGO: Isso precisa parar. Isso vai parar.

LUDO: Helena. Isso é tudo sobre você.

DIOGO: Mas como que você coloca ordem em um milagre? Uma coisa que precisa romper com tudo aquilo que você considera possível existir.

LUDO: E eu sinto como se… eu pr... você... devia estar aqui.

PÂMELA: É só isso que é importante pra você? É só o dinheiro?

L: Estar certo, também.

PÂMELA: E quando você pretende começar?

DIOGO e LUDO: Tudo começou em uma tarde de primavera há alguns anos, perto do mar, um fim de semana agradável, uma coincidência agradável reuniu este grupo improvável de pessoas, corpos entulhados de pensamentos, sentimentos, tempo, mas as pessoas que chegaram lá eram outras, elas ainda podiam acreditar que a realidade é só isso que nós podemos ver, tocar, medir e encaixar em algum sistema lógico, nenhuma daquelas pessoas voltou, levamos todos esses anos pra descobrir, ainda nem sei se já descobrimos tudo, se existe mesmo isso de descobrir tudo, mas é por isso que eu vim aqui hoje, é por isso que eu estou falando com você, esta é a minha história e ela ainda sangra como uma ferida aberta, isso precisa parar em algum momento, isso vai parar.

PÂMELA: E quando você pretende começar?, eu deveria ter dito.

KARINA: É ela, sim, tenho certeza. Isso não para.

MANO: Foi assim que isso começou. Foi assim que você disse.

KARINA: Você lembra o nome dela? Carla? Clara?

MANO: Como é que eu poderia esquecer?

KARINA: Eu acho que ela tinha tantos nomes… Verônica, Valentina…

MANO: Meu amor. Você está aí? Pâmela.

KARINA: Pâmela. O nome dela era Pâmela.

MANO: Você está aí?

HELENA: Sim, eu estou aqui. Eu sempre estive aqui. Você não me enxerga aqui, é isso?

DIOGO: Você precisa de ajuda.

KARINA: Eu posso muito bem lidar com isso sozinha, obrigada.

DIOGO: Meu amor, você tem ouvido vozes e isso está te fazendo mal.

HELENA: Tem que ter uma explicação lógica pra isso tudo.

KARINA: Eu quero voltar para lá, Diogo. A gente precisa fazer alguma coisa.

HELENA: Às vezes eu acho que eu morri.

DIOGO: Ela está morta! Faz anos! O que você acha que tem pra ser feito?

KARINA: Eu preciso descobrir, Diogo . É o único jeito.

HELENA: Ou… eu devo ter vivido um sonho. Não sei onde que fica a explicação lógica, ainda.

KARINA: E se você não quiser vir comigo, eu vou sozinha!

DIOGO: E aí eu fui. Claro. Pra dentro de um pesadelo, direto pra onde eu seria despedaçado, por que não? Isso não podia mais continuar, era a mulher que eu amava! Era a mulher com quem eu achei que passaria o resto da minha vida.

L: Você não vai. Fui eu quem te deu isso. Você nunca mais vai conseguir nada nessa tua vidinha de merda.

MANO: Sim, foi assim que começou. Pâmela. E você veio até a minha casa.

L: Você nunca vai ter nada!

HELENA: Isso precisa parar! (Silêncio.) Alguém… alguém poderia contar essa história direito?

DIOGO: Era o que eu estava tentando fazer aqui, mas você tinha que atrapalhar tudo.

KARINA: Helena?

HELENA: Oi!...Oi, é você?

DIOGO: Tudo! Tem que atrapalhar tudo!

KARINA: Eu vou te encontrar, Helena. Eu não vou deixar que nada aconteça com você. Não como aconteceu com ela.

DIOGO: Como eu estava contando. Direito. Como eu sempre estive.

LUDO: Eu vou te encontrar, Helena.

KARINA: Helena?

DIOGO: Era tudo sobre Helena. Eu deveria ter visto já naquela noite. Eu tinha concordado em voltar com a Karina pra onde tudo tinha acontecido. Eu não sei por quê, eu sentia que era o que eu precisava fazer. Ajudar a Karina, minha mulher. Ela não estava bem, ela estava ouvindo vozes, vozes de outras mulheres, a voz de uma mulher que tinha morrido.

KARINA: O nome dela era Pâmela.

L: Ninguém quer ouvir essa história. Você nunca vai ter nada.

(Longo silêncio.)

PÂMELA: Você se lembra. Você se lembra de como era estar presenciando um milagre.

(Blecaute.)

PÂMELA: Você sabe que é isso que está acontecendo agora?

HELENA, ao mesmo tempo: Você sabe dizer o que está acontecendo agora?

DIOGO, ao mesmo tempo: Quem está falando agora?

(Música. Cenas de praia nos telões enquanto passam os créditos iniciais.)

sábado, 11 de setembro de 2021


 

eu troco as horas jogo as chaves fora
às vezes eu te odeio pelas coisas mais idiotas
tenho umas manias que eu não vou mudar
e outras que até tudo bem
mas eu não quero que você vá embora
mas eu não quero

você nem olha você nem dá bola
é o choro que te engole se você não chora
você nunca prometeu que ia melhorar
e até que está melhor que ontem
eu só não quero que você vá embora
é só o que eu não quero

virão tempestades e destroçarão uns troços
a vida terá de trevas um tanto
dói
nem precisava eu te contar
mas não me peça pra te ver indo embora
não vai embora

eu vou sobrar eu fico quieto no meu canto

sábado, 4 de setembro de 2021


 

Valparaíso - Chile
Então agora as cordilheiras me separavam de tudo que eu já tinha vivido. Eu estava com a sensação de ter chegado a um limite, atravessado um espelho, era uma terra antípoda de tantas formas, a beira de um abismo, e então aqueles navios e máquinas imensas debruçadas sobre o Pacífico e uma ideia que me parecia um pouco impossível de algo ainda mais adiante, no sentido do amanhã. Naquela tarde, pela rua, eu havia pedido informação a uma mulher que passava meio carregando e meio sendo carregada pelas mãos por dois meninos pequenos, ela acenou com a cabeça e disse alguma coisa que para mim soou apenas como ma iá, levei um tempo para entender que era más allá, em português ninguém diria mais lá, talvez lá está, mas logo ali, claro, na direção em que ela acenava com a cabeça, e eu passei o resto do dia relembrando como aquilo soava, quase podia ouvir a forma como ela tinha dito, ma iá. Agora pensava em Pablo Neruda e em sua casa Sebastiana, em sua poltrona chamada Nuvem. Eu o sentia como uma presença real, tanto quanto é real alguém poder ser feito de América ou ter um coração ou mãos de humanidade, ele caminhava ao meu lado como um velho e tão querido amigo me mostrando a sua cidade, orgulhoso, confortável. Quando chegou a hora, ele se foi, deixando-me sozinho para que os meus pensamentos silenciassem, que já bastava a inquietação do tráfego e aqueles ventos fortes arremessando o mar contra as rochas, era o final da tarde e o ar gelado e marinho me acordava, não dava para saber direito se era um recomeço ou um fim, foi a primeira vez na vida que eu vi o sol se por no mar e não pensava em mais nada, só de vez em quando ainda escutava ao longe, mas bem ao longe mesmo, ma iá.