domingo, 30 de setembro de 2018



Um pouco depois das nove, entrei em casa, larguei as sacolas e a bolsa ali mesmo no chão da sala e desabei no sofá antes que Ernani aparecesse e dissesse “boa noite”. Não era bem que eu estivesse triste, mas de certo modo era, sim, uma mágoa de existir, só que mais quieta, meio que o leito seco de algum rio antigo. Ernani prometeu café e me deixou ali sozinha por uns bons quinze minutos, tudo que eu queria, não, talvez eu quisesse um pouco mais que quinze minutos, ficar ali deitada de olhos bem abertos sem saber mais nada além de teto e ruídos vindos da cozinha. Por que meu Deus tantos personagens sou lá fora onde eu estou agora fui eu ou Ernani quem descalçou os meus sapatos?

O cheiro do café me alcançou depressa, mas o ânimo que ele sempre despertava em mim, dessa vez, não despertou. Se eu voltasse à vida, se eu recobrasse a consciência da minha vida, estaria chorando e não gostava de chorar assim sem forças. E não que eu estivesse em paz, então, imóvel, só não dançava mais com as tempestades internas – e eram todas internas. Ernani chegou com a caneca cheia no instante seguinte, como se o tempo tivesse dado um salto, ou então nem percebi que eu cochilei, “obrigada”, não, talvez eu não tenha dito “obrigada” em voz alta, eu era só um estender as mãos e me sentar e trazer pra mais perto aquele cheiro quente, uma, duas assopradinhas, a segunda demorando até acabar o fôlego, pouco fôlego, um gole, deus do céu como está bom. A expressão de Ernani, me olhando, era uma interrogação delicada, desviando depressa o olhar. Você está bem? Não, é claro que não estou.

Quase falei “estou cansada de mentir”, mas aí me ocorreu que, se Ernani me perguntasse “então qual é a verdade”, eu sinceramente não saberia o que dizer.


sábado, 22 de setembro de 2018

se                                     não, esse não é um bom começo

terá que haver um dia de uma compreensão tão límpida

Se você estiver nascendo agora, vai ter que crescer muito rápido em muito pouco tempo. Não são só palavras de chumbo ou são nuvens de chuva, um jeito estranho de falar, um mundo de olhos bem abertos sobre você esperando rápido agora e você ainda nem ontem.

Então quando um passo ou dois passos quando era ainda o chão porque era perto a gente se enrolava em se rolava e laraiá lará laiá. Na sala ou se na lua ou sei lá eu mas entender foi sempre que na carne e sim de tanta gente ser e de existir envelhecendo então que apenas pernas e que estradas indo e que ter corpo indo e indo e indo e indo ir

Haverá um dia. Ou dois, ou toda a eternidade em que amadurecidos só recordaremos e repetiremos e re-rediremos o que ressabemos tanto e tão de novo que de novo mesmo pensaremos que não há mais nada porque nunca houve mesmo e mesmo que a verdade seja que haverá esse dia em que seremos tanto e tão ressidos que então quase desfazidos e quem sabe em prantos só renasceremos.

domingo, 16 de setembro de 2018



Ainda não enxergaram. Estão imersos em si mesmos e não veem. E não percebem absurdos e contradições em seus discursos. Mantenha a espinha ereta ao atravessar o território dos comentários hostis; respire fundo: ficaremos sozinhos se não quisermos agredir ninguém (e não queremos). Teremos que esperar pelo último trem antes da aurora. Conta as moedas: cara fome, coroa um cigarro. Precisava mesmo era de muito mais que só um abraço, mas tenho que reconhecer que é um ótimo começo. Vimos quilômetros e mais quilômetros de campos férteis em almas condenadas pelo descaso – e ainda nos obrigarão a ver safras inteiras desperdiçadas, apodrecendo em inércia. “Quem ganha com isso?” é uma boa pergunta, mas ainda: “Ganha o que?” e “É isso mesmo que é ganhar?”. Nenhum de nós acredita que seja.

Ajeita a mala como um travesseiro, o chão vermelho e sujo da estação nos empurrou até este canto, os aposentos da realeza. Em nada caberão nossos bons sonhos. As luzes são muito fracas, ou piscam, agonizando, e de vez em quando um telefone toca. Enquanto os senhores da História estão ocupados demais pra entender os estragos que sua cegueira faz lá fora. Mas tudo bem: nenhum outro lugar será descanso. Em mil anos, ainda não terá se esgotado essa má vontade toda, nem a desesperança.

Dorme, não há mais nada a fazer agora. Esse ruído, esse ar pesado vem das cenas de um filme ou de um pesadelo, e só. Boatos de que a primavera não virá, nem risos, nem amigos, nem alívio. Nossa ternura já não contamina, povoará a Terra com ausências. Teremos vencido sem orgulho e sem nunca termos banido os ratos, e tudo de que saberemos é do amor. Alguns diriam “pelo menos isso”.

Dorme.

domingo, 9 de setembro de 2018




Às vezes o agora
É um agora em excesso
Ilha deserta no oceano
Uma canoa furada
Às vezes o agora
É demais de agora mesmo
Algum soluço engasgado
Um prato cheio pra fome
Às vezes é agora
Tanto que agora é tão tudo
Que é como se não estivesse
Que aperta um nó de estar sendo
Às vezes agora
E agora que é as vezes
Parece que não passa nada
Ou que é pra sempre o que passa

domingo, 2 de setembro de 2018


A primeira vez que me encontrei com Eva, estávamos na Ponta do Seixas, em João Pessoa, uma praia agradável que é o verdadeiro “Palácio da Alvorada” em território brasileiro, porque é a faixa de terra mais ao leste do país. Em uma mesa composta por sete mochileiros, cada um de um estado diferente, Eva era a única mulher, mas parecia confortável com isso, embora menos falante que os homens. O tema da conversa era desde o início a polarização política que tomava conta do Brasil já naqueles tempos, dominando as redes sociais e trazendo à tona um universo de arrogância e agressividade até então dissimulado. Todos os sete tendíamos à esquerda, em variados graus de engajamento e idealismo, mas mantínhamos o foco da conversa menos em questões partidárias e eleitorais do que em questões morais, especialmente em alguns princípios degenerados do que entendíamos por “direita”.

– Defendem abertamente a Ditadura Militar, – resumiu Pedro – elogiam torturadores e promovem ideologias sexistas, elitistas, racistas, fascistas, todos os piores "istas" que a humanidade já produziu. A esta altura da evolução do conhecimento, da comunicação, não tem nem como dizer que isso é ser conservador: isso é ser retrógrado.

De frente pro mar, no ponto em que estávamos, me ocorreu que, se eu quisesse continuar no Brasil, a única alternativa possível era andando pra trás – mas o fato geográfico não me agradava nem um pouco como metáfora política. No entanto, um impulso natural de acalmar as discussões me fazia procurar um argumento que pudesse temperar aquela exasperação toda. As ondas do mar?... Sim, seria perfeito, se eu quisesse perder todo o respeito que ainda pudesse ter. "Deixe estar", eu teria que dizer, "voltar atrás faz parte do processo de fluir.” Ninguém aceitaria isso melhor do que eu, mesmo se fosse verdade.

– Vá, – disse Antônio, de repente, arrastando sobre a mesa um guardanapo e uma caneta em direção a Eva – me desenhe um mapa até seu coração.

Eva riu.

– Você ia precisar de uns trinta mapas simultâneos – disse. – E ainda assim...

"Mapa não é território", completei mentalmente. E só então reparei na camiseta que ela estava usando: uma estampa do Bob Dylan e a frase "There must be some way out of here". Meu olhar se perdeu sobre o mar, enquanto os outros prolongavam a discussão política e os dois começavam um jogo não muito sutil de sedução e esquiva. "Todos no mesmo barco", pensei, num raciocínio que começava a se fragmentar, meio bêbado, e a se perder no horizonte, "fazer um mapa das ondas, milhões de mapas simultâneos, sem nenhum lugar pra chegar, num barco só, um motim, o mar, o mar, as ondas..."

Deve ter um jeito de sair daqui.