segunda-feira, 30 de dezembro de 2019


Você tem me dado apenas ecos. Pedaços de fantasmas que atravessam meu caminho. Não conta como se algo acontecesse. Já me cansei de implorar aos deuses, de fazer o melhor que posso, das ruas históricas de Tiradentes e de turistas que seriam os primeiros a aplaudir o enforcamento desse mesmo Tiradentes se vivessem na mesma época que ele. Mas a cachaça mineira, ah, sim, e todas essas feiras gastronômicas. Acho só que eu não tenho nenhum amigo gente. Ontem, numa praça, alguma coisa fria e úmida tocou de repente em minha mão esquerda e, quando fui olhar, gostei tanto que até tirei uma foto com meu celular, olha




O resto são cartazes de “Não fazemos trocas”. O alto daquelas montanhas, ao longe, quão longe você acha que leva. Você tem me dado apenas vácuo, tem sido só como se o vento brincasse de adivinha, e eu quero ser visto como um igual, mas a igualdade é uma fraqueza que ninguém suporta. As pedras do calçamento, a estrada de um rei que morreu, e hoje, do outro lado da cidade, conheci outro cachorro, igualzinho à fêmea da fotografia, mas com os olhos castanhos. Não falei nada a ninguém, achei que não era importante. Mas o dono do cachorro decidiu contar a história de quando o viu pela primeira vez, ainda filhote, e disse que na mesma ninhada tinha uma fêmea idêntica a ele, mas com os olhos azuis.

Você não tem me dado nem uma gota da atenção mais rasa. O cachorro, acho que entendeu que estávamos falando nele, lançou um olhar comprido em minha direção, me senti na obrigação de falar “Tua irmã te mandou lembranças”.

Pro teu desprezo, sim, apenas pro teu escárnio. Tenho sido o menor e mais sem razão. A independência é uma grande afronta, algo em mim é pior que a ideia de república pra interesses que ainda nem chegaram ao século dezenove. Mas neste caso, a solidão não é algo pelo que eu deva me sentir culpado. E eu poderia estar morrendo por bem menos, a verdade é essa, eu poderia simplesmente não estar tentando nada.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019


Não sei por que pensei alguma vez que não há poesia na realidade

ou que o nome das coisas do mundo não traduz com muito acerto as coisas da alma

ou que o retrato de um dia não atinge nem a sombra do ideal eterno de entender a eternidade – mas aconteceu que hoje

ao fim dessa jornada que eu chamava de espiritual e grandiosa

nada me pareceu mais espiritual e grandioso do que estar no mundo

e passar distraído pelas flores da praça enquanto tento me lembrar se embarco às oito ou às nove

e me despedir da boliviana com quem conversei tantas vezes num café sem nunca perguntar seu nome

e lamentar que eu tenha adiado tanto a minha vontade de fotografar o Cristo indígena na cruz da igreja que estou indo embora sem ter feito isso

e arrumar as malas com um misto de alegria e medo e uma profunda tristeza pelo fim da caminhada

e recolher memórias e embalar com cuidado os presentes frágeis que comprei para uns amigos

e reparar que há algo de banal e cinematográfico em estar chovendo no dia em que ando por aí dizendo adeus a Machu Picchu

e perceber que estar em casa é menos uma localização geográfica e mais o acolhimento que afinal oferecemos a nós mesmos

e observar as crianças, homens e mulheres com suas vozes cotidianas ainda prontas para me chamar de amigo

e doar as roupas e vender os livros de que não preciso e que já não quero ter pesando na bagagem

e confessar a mim mesmo que desperdicei o meu amor inutilmente sempre que o contive por antecipar este momento

e chorar como um menino que se vê obrigado a devolver um brinquedo que tão gentilmente lhe emprestaram

e ter a sensação ligeira de que amanhã ou depois eu vou poder descansar de novo em minha pedra preferida à margem do Rio Urubamba

e abraçar a moça da hospedagem que foi minha filha e mãe e irmã ao longo destes dias em que nunca nos dissemos muito mais do que “boa tarde”

e admitir enfim que não há nada mais sagrado em nenhum ser humano do que o simples fato dele ser humano

e que uma prece pode não ser mais do que esse movimento tão sutil dos lábios ao contar um troco

e que oferendas podem não ser mais do que anotar um número de telefone em um post-it cor de rosa

e que um ritual pode não ser mais do que se deter à escada e amarrar um dos cadarços

porque Deus está em silêncio e imóvel no ruidoso coração do movimento

e em tudo aquilo que nós não estamos

nem estaremos nem nunca estivemos

e que só pertence a um homem num lugar de névoa que nos toca mas ninguém alcança

porque é Deus e não é homem

e porque é Deus e pronto.


terça-feira, 17 de dezembro de 2019


Todos vão responder, sempre, não a você, mas à ideia que têm de você, e na maioria das vezes, essa ideia vai ser um resumão de no máximo uma palavra baseado em fofoca, em um ato isolado que você cometeu um dia ou em um hábito mais ou menos frequente, não importa muito, de qualquer forma vai ser um hábito entre vários, então transformado para o resto da vida na Sua Personalidade.

E o pior nem é isso.

Porque somos todos médicos da razão dos outros, de suas almas, e todos sabemos, como especialistas que somos, que nessas medicinas do espírito não combatemos as doenças, mas os doentes infames.

O que nos facilita esse trabalho, hoje, em tempos de ciência tão avançada, é que já sabemos que a personalidade humana não está dividida em doze tipos definidos pela posição de corpos celestes no momento do seu nascimento, por exemplo, nem é tão complexa como antigamente se imaginava, dividida entre os tipos sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico. Nem, aliás, quaisquer outras divisões que as pseudociências já tenham inventado. Está claro, indubitável, definitivo e comprovado que a personalidade humana se divide em duas e apenas duas categorias básicas: a de direita e a de esquerda.

A característica talvez mais marcante dessa divisão é que ela não só traduz de forma tão certeira os traços gerais da personalidade de cada um, como também traz embutida um certo código moral e de comportamentos que obrigatoriamente deve ser seguido se você ainda quiser ser bem-vindo no lado a que pertence. A vantagem é que você poderá dormir tranquilo sabendo que a fonte de todo o Mal, de todos os demônios, do fascismo, do caos e de tudo-que-está-errado é com certeza o pessoalzinho do outro lado.

A desvantagem, embora não se reconheça, é que ambos os lados exigem um certo desespero infantil de se agarrar a um Avatar, a um Enviado Divino ou Fenômeno Histórico, o Representante Máximo dos valores dessa direita ou dessa esquerda e que necessariamente ocupa ou já ocupou a Presidência da República.

Os que não se declaram nem de um lado nem do outro não podem ser levados a sério. Estão mentindo. Ou, quem sabe, nem chegam a ser humanos mesmo. Humanos são da direita ou da esquerda, ponto final, essa é a única verdade. A Verdade Absoluta. A VERDADEIRA VERDADE.

*Morte a todos os infiéis.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019



Eva comprou um pequeno tabuleiro de jogo-da-velha com peças feitas de casca de coco, e a gente ia jogando no caminho até São Luís do Maranhão. Ela contava a história de uma atriz que tinha sido maltratada na rua por causa da personagem que interpretava na novela, uma vilã, e só porque essa estranha na rua não entendia que aquela na TV não era ela.

– Imagina isso num blog de literatura – falei. – Onde eu conte histórias, publique poesia... Acha que alguém vai entender a diferença entre mim e o eu-narrador, entre mim e o eu-lírico?

– O que mais me chama a atenção aí é você falar em blog como se isso ainda existisse – ela respondeu.

E me contou outra história, dessa vez sobre uma amiga que tinha sido demitida por causa de publicações na internet no início do século. Alguém da chefia achou que eram indiretas, e parece que uma dessas publicações chegou a causar algum problema de verdade, não lembro bem. Mas a mulher jurava que não, nunca, nem passou pela cabeça dela nada relacionado ao trabalho na hora de publicar. E Eva sabia que era verdade, conhecia até o motivo de uma publicação ou outra, mas ninguém acreditou, e no fim ela acabou não tendo a chance de desfazer o mal-entendido.

– Era uma grande amiga – ela falou. Pareceu se lembrar de algo divertido, olhou para mim sorrindo: – Ela implicava com o “te quiero”. Dizia que era sexual demais dizer que você quer alguém, ficava “indignada” que no espanhol isso pudesse substituir “eu te amo”. O “eu te amo” já tem gente que não consegue separar do desejo, né?... Eu vivia dizendo pra ela: “Te quiero”, “te quiero”, só pra encher o saco, mas também porque eu queria ela, mesmo. Faz tanto sentido, pra mim.

Pareceu que ia ficar melancólica, mas se ia, não deu tempo. Tinha acabado de ganhar a primeira partida de jogo-da-velha depois de umas oito derrotas consecutivas.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019


(Diários de Machu Picchu #09)

Teus olhos não sabem contar a que profundidade você foi, mas é um lugar onde a dor não respira. Alguns séculos passaram no teu rosto. Dentro de um mergulho, a leveza é estar envolvido por algo mais pesado que o ar, mas pelo menos em silêncio. A solidão é uma sombra produzida por tua própria chama, transborda, eu poderia tocar ainda que você se lembrasse de me ver aqui fora e sorrisse, disfarçada. Nada pode te alcançar ou te trazer de volta. Meu coração é o que aperta, eu que já estive tantas vezes nesse mesmo lugar, te adoro muito mais do que sou capaz de curar ou conter, só me cabe guardar a distância com esse gosto amargo na boca, esse nó na garganta. Tantos mundos desabam por dia. Pedacinhos de alma somem pra sempre, soterrados. Tua expressão é somente um quadro que retrata a névoa, canções melancólicas ecoando ao longe. E, ainda assim, beleza triste e noturna, você é perfeita perdida em si mesma, tanto quanto é perfeita encontrada. Eu, por mim, posso te olhar vidas inteiras, a mão estendida à espera de que você desperte ao meu lado, no centro de um universo expandindo, no vento insone, em delírio, em tudo. Em todos os casos.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

"Você nunca me amou", quero dizer, mas lembro que ninguém aqui pagou pra ouvir minha tragédia. Antes de entrar no palco, deixamos penduradas num cabide as nossas mágoas, é assim que tem que ser, se não, não é teatro. Só que hoje à tarde ela deixou a aliança sobre a mesa antes de ir embora, e agora aqui estamos nós pra mais um espetáculo. Eu tenho que falar “É bom te ver de novo”, mas sem mostrar o coração em pedaços. Quero morrer bem antes do fim do primeiro ato.


Quieto, eu fico olhando ela sair por uma porta cenográfica. Não poderei gritar o nome dela porque, infelizmente, só sei como se chama a personagem. E meu roteiro não diz nada agora além de “Cai o pano”. Não tenho como calcular em quantos níveis não me importo nem um pouco, nem como explicar por que me importo tanto. Ah, sim, fizemos uma bela cena, ela e eu. Cai o pano – aplausos – deveria haver uma consagração aqui. Nossos sorrisos tentam se espalhar por sobre a maquiagem, inutilmente, sem o menor traço de verdade. Não há nada maior que essa dor contida – uma tristeza, lembra?, que o poeta bem intencionado achou que poderia usar como aquarela. E que fica lá, mancha de luz nos olhos quando os refletores se apagam. Como um troféu de silêncio. Como uma paz muito plástica.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Suas janelas de assistir, poltronas de esticar as pernas e biscoitos e bebidas bobas de matar o tempo e disfarçar aquela fome toda de vida, a fome desmentida e renegada soterrada pelo medo horror e amor ao tédio então chamado de descanso ou segurança, os seus passeios pela praia ou pelo parque, os seus mirantes monumentos e filminhos de domingo à tarde, tudo que amortece o fogo, os seus remédios e joguinhos de baralho ou bola ou quem corre mais rápido ou quem derruba o outro mais rápido, qualquer coisa que grite mais alto, que aquiete, silencie, cale, os seus sorrisos sem graça e suas palavras quietas sem alma, os seus limites claros e armaduras visíveis sobre corações apodrecidos presos a tão pouco e tão certos de que é bem melhor que nada, só um amor pré-fabricado, feito sob medida e cheio de instruções implícitas às vezes vomitadas com raiva como se todos já devessem ter aprendido há muito tempo, seus cachorrinhos e gatinhos e churrascos e o preço dos seus carros, sua indiferença diante do maravilhoso inexplicável, sua constante fuga de si mesmos, seu existir arrastado gastando o chão, sobrando e transbordando a Terra, só mais um igual a tantos, próximo e sem vez, espíritos mofados.

terça-feira, 5 de novembro de 2019


























VOCÊ É BURRO
estudos arqueológicos apontam para a existência de inscrições como esta com mais de cento e quarenta e nove mil, seiscentos e setenta e dois anos de idade espalhadas em cavernas, portas de banheiro e comentários de internet,
disse-me o Mestre.

E me contou a história de Liu Dig-Dong Lerei da Montanha.

NINGUÉM PASSA POR AQUELA PORTA
foi a segunda frase mais falada e escrita desde que o tempo nasceu, disse-me o Mestre.
Era uma porta branca, dourada, azul, tão alta que ninguém nunca viu onde acabava.
E estava sempre fechada.

Diante da porta, acumulava-se uma multidão maior que a soma de todos os habitantes de todas as metrópoles de todas as eras.
A maioria chafurdava na lama, como porcos, porém muitos deles andavam eretos e vestiam roupas bem passadas, pareciam lúcidos e com tudo sob controle, e nunca diriam VOCÊ É BURRO usando exatamente essas palavras.

Liu Dig-Dong atravessou pelo meio deles sendo apedrejado, cuspido e humilhado até chegar aos pés da Grande Porta.

VAGABUNDO
BABACA ARROGANTE
VOCÊ É BURRO
NOJENTO IMUNDO
FRACASSADO
VOCÊ É BURRO

VOCÊ É BURRO

Liu Dig-Dong estava no limite de suas forças, coberto de feridas, e ao ver suas mãos trêmulas se erguendo em direção à maçaneta, devagar, a muito custo, os que estavam à sua volta riram e entoaram coros de FRACOTE e MULHERZINHA.

A porta se abriu com um simples toque na maçaneta.

A luz que vinha do outro lado cegou a todos por um instante, e fez com que os que estavam mais próximos se afastassem.
Todos, exceto um.
Exceto Liu Dig-Dong e mais um, corrigiu o Mestre.
Um homem magro, vestindo apenas uma pequena tanga, sentado em posição de meditação, de olhos fechados, movendo os lábios numa prece silenciosa.

“O que está fazendo?”, perguntou Dig-Dong.

“Estou pedindo aos céus que me deixem entrar”, respondeu o homem, sem abrir os olhos nem mover um só músculo.

“A porta está aberta”, falou Dig-Dong.

Mas o homem continuou em sua prece.

Dig-Dong olhou para o outro lado. Começava a se acostumar à luz e a identificar as formas do mundo que esperava por ele.

Que esperava por todos eles.

No momento em que Dig-Dong avançou, a multidão voltou a gritar, enfurecida.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019



A liberdade, muito mais – ou muito menos – que um tratado
ou uma ordem das coisas no mundo,
é um homem sob a chuva numa praça da cidade
na manhã mais calma,
andando a passos lentos,
contemplando o alto dos prédios,
perdido sabe-se lá em quais diálogos submarinos,
numa expressão de nada,
ou qualquer coisa entre a preguiça e a graça,
ou qualquer coisa como um puro homem
que é de músculo e de ideia – a liberdade,
tão diferente de um acordo entre os que compartilham a jangada,
é a alma sempre pronta pra assentir com a cabeça,
nadar sozinha, tomar os remos ou amar a correnteza,
numa atenção contínua
que é às vezes agonia e glória
e é às vezes êxtase e castigo –
a personagem liberdade
na última página de uma novela
e a liberdade suja sobre o pó das ruas
e a liberdade música e poesia e tinta
e a liberdade regra em um artigo do estatuto
e a liberdade sonho e a liberdade guerra e a liberdade paga
e a liberdade voo e a liberdade corpo e a liberdade raiva
e a liberdade tudo e a liberdade cada ponto de uma estrada
caem por terra como folhas secas de palavras
quando a paixão se gosta, quando o querer dança e quando o ser se basta.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

[Aqui tem a fotografia de um velho negro com longas barbas brancas, sentado em um banco, de pernas cruzadas, fumando um cachimbo. Olha distraidamente para a câmera, com a cabeça erguida, através de uma pequena porção de fumaça.  Usa uma calça azul-marinho, camisa branca de mangas dobradas na altura do cotovelo e uns sapatos pretos muito bem lustrados. À direita dele, quase fora de quadro, um espelho reflete parte do banco em que ele está sentado e uma pequena faixa lateral de seu corpo. Acima, na parede, um pedaço de um relógio antigo de madeira, de que não chegamos a ver os ponteiros.]
olha imagina se
espera isso vai parecer estranho
mais estranho
imagina se em vez de estar tentando sei lá
dizer alguma coisa
imagina se eu só estivesse desenhando letras
Pratos e balanças e cegueiras e
No dia em que reparassem em quanto tempo e energia gastam tentando superar obstáculos que nunca estiveram lá
O ar sem vida olhos vermelhos de raiva
Poemas publicitários e caríssimos coquetéis de arte alternativa e discursos decompostos e paixões desesperadas e puxando as cordas dessas marionetes um monstro de milhões de faces gargalhando e repetindo calma calma tem mercado pra todo mundo
A lista de exigências dicionários
Uma cidade suja endurecida de vícios uma rua preguiçosa de ir uma soberba de querer crescer somente igual e mais pra dentro
Se ao menos uma prévia da utopia
[Fotografia de uma janela aberta emoldurando montanhas longínquas, com cortinas de renda branca penduradas dos dois lados. O céu está coberto por uma única e imensa nuvem cor de chumbo, mas as árvores das montanhas estão banhadas pela luz do sol. No parapeito de madeira, há um pombo cinza, desses urbanos, pousado de frente para a câmera; enquanto outro, de um cinza mais escuro, bate as asas um pouco acima e à esquerda dele, prestes a pousar, também. As asas do segundo pombo, em movimento, são apenas um pequeno borrão nesta fotografia.]

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

nada no mundo
é tão logo e tão longe
quanto esse amor que me leva

janela e paisagem
terra prometida
encontrada

nada no mundo
é tão quando e tão onde
quanto esse amor que me espera

labirinto de tempo
pressa contida e
chegada

nada no mundo
é tão fogo e tão água
quanto esse amor que me envolve

essa matéria de sonhos
desejo impossível
palpável

nada é mais simples
nem mais sobre-humano
nem nada

nada no mundo
é tão meu e tão plágio
quanto eu te amo


quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Quando Fê chegou em casa naquela tarde, encontrou Dani dormindo sem nenhuma roupa no chão da sala, as pernas e os braços abertos como o Homem Vitruviano do da Vinci, as luzes apagadas e o celular tocando música clássica. Fê suspeitava de que fosse Brahms: não entendia muito de música clássica, mas tinha aprendido alguma coisa depois de nove meses namorando com Dani – e agora dividindo apartamento. Sentiu o cheiro de incenso de alecrim. Teve vontade de ir deitar-se também no chão da sala, mas em vez disso foi largando as suas coisas no caminho até o sofá e desabou de bruços sobre ele.

– Campos de centeio – disse uma voz rouca e lenta vinda do chão.

– Não sei do que você está falando – resmungou Fê – mas acho que eu diria “limoeiros amarelos”.

Demorou vários segundos até que Dani voltasse a falar, ainda com a voz grave e arrastada:

– Sim, tem razão. Também os limoeiros amarelos. Claro.

Uma brisa imperceptível agitava as cortinas. Tinha feito muito calor durante o dia, mas agora a temperatura estava começando a cair. A música terminou, ficou tudo muito quieto, depois começou a tocar outra música de Brahms, se é que era mesmo Brahms. Dani rolou o corpo de lado para ficar de frente para Fê.

– Sonhei que estava indo a uma reunião de negócios em um tipo de restaurante subterrâneo – contou. – Alguém queria me vender uma arma proibida, a situação toda era bastante perigosa. Era só eu e um cara muito grande numa mesa, e ele estava falando que algumas das maiores atrocidades já cometidas pela humanidade tinham sido cometidas em nome do amor. Falava que o amor não existe, que só o que existe é o egoísmo, que foi por egoísmo que a gente inventou o amor, blá, blá, blá, blá, blá... É engraçado como essa ideia é usada para justificar comportamentos muito piores do que aqueles movidos pelo “egoísmo” de se amar alguém. Mas enfim, a situação no restaurante era cada vez mais tensa, e eu comecei a ver que ao redor da nossa mesa tinha muitos homens armados, olhando sérios para mim. Tive uma sensação horrível, um aperto no peito, aquilo estava começando a virar um pesadelo... Mas aí você chegou. Eu acordei, dormi outra vez, acordei de novo, dormi...

Fê se ajeitou um pouco no sofá, também para poder olhar para Dani. Ficaram assim, imóveis, olhando-se nos olhos por um longo tempo.

– Se uma pessoa diz uma palavra – disse Fê – por exemplo: “pêssego”... Você tem uma imagem mental para essa palavra, você imagina um pêssego, ele na sua cabeça. Mas esse pêssego que você vê aí é sempre diferente do pêssego que eu estava pensando quando falei a palavra. Sempre. É menor, sei lá, mais amargo, mais maduro. Mais suculento. Ou talvez você nem goste de pêssego. Talvez ele te faça lembrar de alguma história triste da infância, ou de alguém que você já amou e que a vida te levou embora. É um pêssego muito cheio de informações, e todas essas informações são muito diferentes das que estavam ligadas ao pêssego que eu pensei. Porque a minha vó tinha pessegueiros no quintal. Porque pêssego em calda é minha sobremesa preferida. Ou sei lá por que.

A música parou de repente – o celular ficou sem bateria – mas ninguém ali se importava com o silêncio. Começavam a piscar os olhos demoradamente, os pensamentos vagavam cada vez menos lógicos . Foi Dani quem insistiu em manter uma conversa:

– Eu estava pensando... Tem uns livros de autoajuda, uns  discursos motivacionais... Tem umas coisas que deviam vir com um selo dizendo: “isto aqui pode ter o mesmo efeito de jogar água em quem está se afogando” ou sei lá... “Dar um martelo a quem só tem parafuso”... Ou...

Fê estava de olhos fechados, e Dani já não conseguia mais manter a linha de raciocínio. Ficou pensando por alguns segundos, e tudo que conseguiu acrescentar à lista foi:

– “Pérolas aos porcos”...

Desistiu de tentar manter os olhos abertos assim como desistiu de pensar. Já estava quase cochilando de novo quando ouviu Fê dizer:

– E eu vou ter que insistir nos limoeiros amarelos.

💜”, pensou Dani. Mas já não conseguia dizer mais nada.


terça-feira, 1 de outubro de 2019

o horizonte e o ar das montanhas altas. quando o vento varre o ardor do sol. flor entre as pedras, pequenas frutas nos arbustos, caminhos de terra, a paisagem e algo como a sua voz. suaves riachos. asas. patas. o amor dos grilos por constelações.

sussurros, sopros, sensações. o corpo de batalha, de ausência ou de prazer. o corpo de todos, o corpo que é só de si. sentindo. sendo o sentido de ser.

se a minha gratidão não transbordasse.

abraços, risadas, a eletricidade que perpassa. mãos que se dão, palavras que se despejam, pálpebras, misérias e mistérios misturados. essa lembrança é de quem. de onde nasceu tanto brilho.

se eu não acreditasse, então.



segunda-feira, 23 de setembro de 2019


Tudo estará bem enquanto você adorar os semideuses certos. Eles terão rios de dinheiro, milhares de seguidores, livros sérios publicados, armas de fogo, fogo, vocação para o escárnio. Desde toda a eternidade, afeto é uma fraqueza e só com violência se responde ao fato de que somos todos igualmente vulneráveis. Vão brigar pelo direito à exclusão com muito mais empenho do que para erguer moradas. Uma vez que te aprisionem sob um rótulo, não demorarão a te esquecer enquanto abraçam monstros bem maiores, enquanto aplaudem atitudes bem mais baixas. E, sobretudo, estarão prontos para te ferir a cada vez que lhes pareça de passagem que você está errado, mesmo se você não estiver errado.
Agarram-se a preconceitos
Agarram-se à intolerância
Agarram-se desesperadamente
Ao desejo de agredir
Adoram-se em negação ao outro
Idólatras de espelhos
Indigentes indiversos
Fantoches do medo
Podem dar a explicação que quiserem para não abrir as portas quando alguém bate, mas suas explicações ainda serão portas fechadas. Podem destruir sem piedade os sonhos mais iluminados de um mundo bom, mas não podem culpar por isso nada além do fato de já não sonharem. Podem lutar, tanto quanto lutam como bestas digitalizadas, cumprindo alguma fantasia egoica de missão divina, purificadora, revolucionária. Mas sempre que derramarem sangue em nome de valores elevados, ficarão mais próximos de se tornarem seus inimigos que de tê-los derrotado.


terça-feira, 17 de setembro de 2019


Antero ficou morando em Machu Picchu Pueblo por mais dois anos depois que nos conhecemos lá. Ele e Ruth acabaram se casando, então ela engravidou e os dois foram morar no leste da África, onde uma prima dela arrumou um bom emprego pra ele. E é onde estão até hoje, com duas filhas lindas que a cada dia que passa se parecem mais com a mãe. Trocamos notícias de vez em quando, e ainda espero que algum dia possamos todos nos reencontrar.

Na tarde em que os dois se conheceram, eu estava sozinho à margem do Urubamba, meditando, como costumava fazer algumas vezes no tempo que passei por lá. Quando voltei ao pueblo, no fim daquele dia, fiquei sabendo por um menino de uns oito anos – que veio perguntar o que eu estava escrevendo em meu caderno – que ficaríamos sem energia elétrica até a manhã seguinte. Voltei pra hospedagem antes que escurecesse totalmente, e aí fiquei um bom tempo à janela do quarto, enquanto anoitecia, vendo as ruelas se encherem de luzes de velas, lanternas e displays de celulares.

No fim, não resisti: fui andar também pelas ruas escuras. Ia passando por pessoas sem rosto, por pequenos focos de luz que dançavam na calçada, sem saber muito bem pra onde estava indo, se é que estava indo pra algum lugar, quando passou por mim essa mulher alta, de pele escura e com os cabelos muito lisos, com um sorriso tão luminoso e um par de olhos tão brilhantes que, infelizmente pra quem não gosta de clichês, a escuridão em volta dela desaparecia por completo. Uns dez metros adiante, depois que a vi, cheguei ao pé de uma escada e reconheci, sentado no quarto ou quinto degrau, Antero, com os olhos igualmente brilhantes e uma expressão de felicidade no rosto. Tentou disfarçar quando me reconheceu também.

– Ó, R, você acha que a gente pode achar um significado no apagão assim como antigamente davam significados pra um eclipse?

– Ãh... – hesitei. – Tenho a impressão de que hoje em dia ainda tem muita gente que dá significado pra um eclipse.

Ele sorriu e balançou a cabeça, contrariado, enquanto eu me sentava ao seu lado na escada.

– Um pouco antes de vir pra cá – ele falou – quando eu estava em Cuzco, fui almoçar com uma amiga italiana e um cara muito novo que era israelense. Aí, lá pelas tantas, do nada, no meio da conversa, a mulher começa a dizer pro moço que não é nada pessoal, veja bem, longe dela dizer uma coisa assim, mas que por razões políticas, ideológicas, ela prefere a Palestina. O rapaz baixa os olhos, diz “se você gosta de terroristas”, pega o prato e sai pra se servir outra vez no buffet. A italiana fica olhando pra mim com os olhos arregalados. “Eu e a minha língua imensa”, ela diz. O rapaz contou depois sobre os anos de serviço obrigatório que tinha prestado ao exército israelense. – Fez uma pequena pausa, depois concluiu: – Uma pessoa de carne e osso, sabe, que viveu tudo aquilo, sentado, ali, almoçando com a gente. Isso invade um pouco o nosso campo de autoridade pra expressar qualquer opinião que seja sobre o assunto.

– Foda – comentei. Aguardei uns segundos e depois falei: – Não seja mentiroso.

Deixei que ele soubesse que eu estava olhando pra sua mão esquerda, onde alguém tinha feito a inscrição à caneta: Ama Llulla, que em quechua quer dizer exatamente isso, “não seja mentiroso” – um dos três maiores princípios morais dos incas.

Ele sorriu, agora como uma criança que foi pega numa travessura. Levantou os olhos em direção aonde tinha ido a mulher de olhos brilhantes, mas agora, ali, só era possível enxergar o mais absoluto breu. Levantou-se, de repente, um pouco sem jeito e visivelmente agitado.

– Desculpa aí – ele disse. – Não tem como eu falar nada sobre isso agora. – Desceu os degraus e fez menção de que ia embora, mas aí parou e começou a me contar o que podia: – Quando caiu aquela chuva toda na hora do almoço... Eu estava na porta do restaurante, não tinha como sair, quando parou uma mulher do meu lado e começou a puxar conversa. Era bonita, se chamava Elizete. Disse que era casada e que tinha uma filha de dois anos, mas que estava viajando sozinha, de férias de algum trabalho ligado a produtos de beleza. “Eu me sinto solteira”, ela falou. Aí eu fiquei olhando pra ela de um jeito que deixou ela meio desconcertada, eu acho, mas é porque eu também fiquei desconcertado, na hora... Quando a chuva passou, saí caminhar sem rumo pela cidade. Andei por umas duas horas e, no fim, foi ali na frente da igreja que a Ruth... Na frente da fonte...

Ficou em silêncio, olhando adiante, como se pudesse ver alguma coisa, depois tornou a se agitar, voltou-se pra mim e disse apressado:

– Não tem como eu falar sobre isso agora. Desculpa. Amanhã. Vocês vão acabar se conhecendo, de qualquer jeito.

E, dizendo isso, desapareceu no escuro.

Sorri.

“Com certeza”, pensei, “a gente vai acabar se conhecendo.” Depois, divertido, quase falei em voz alta: “Já não está suficientemente claro pra todo mundo?”