sábado, 30 de janeiro de 2021


 


 

Tendo assim o silêncio assoprado suas sombras sobre o pântano
Olhares inundados de saudades e alegrias e pesares
Penas de asas renovadas, portas e cortinas balançando ao vento e roupas brancas em varais
Inquieta alma que sonha as trilhas e segredos de montanhas altas
Poesia preguiçosa das manhãs de sábado, os ensolarados
Pés e palmas e ondas de rios e frios da brisa
Canções quase completas, portos, barcos
Verdes folhas vivas arrastando as árvores em direção ao céu
E espalhando os ares
Peixes de cores, couro, escama e correnteza cruzam as distâncias entalhadas
Nuvens que passeiam calmas
E se dissolvem e se espalham em prismas
Espelhos quebrados refletindo ainda a luz sempre encontrada
Tendo assim a verdade aceitado a sua fragilidade de vidro
Cristais, ou pérolas ou mágica
Eternidades de água e poemas que são copos cheios: vem
Abraça o sim que te adora
Esse jardim de bem-me-quer, um por do sol com pétalas de ágata
Vem
Agora alguma coisa há de ser casa


 

sábado, 23 de janeiro de 2021


 

Eu ria toda vez que ela me chamava de “meu fío”, porque ela tinha seis anos e estava falando sério. Estávamos sentados em frente à casa da avó dela, que era responsável pelo quarto que eu queria alugar, e enquanto alguém saiu pra chamá-la em algum outro lugar, a menina ficou ali pra me fazer companhia. Falando sem parar, ela me contava sobre os colegas da escola e as coisas que gostava de fazer nas férias, mal disfarçando uma careta sempre que seus olhos passavam pela tatuagem no meu braço. Estávamos em uma vila – ou, como eles chamam por lá, um arraial – junto ao Parque Nacional da Serra da Canastra, onde nasce o Rio São Francisco. Tinha ouvido falar desse lugar algumas vezes desde que cheguei a Minas, mas só me convenci a ir pra lá depois de conhecer um pessoal em Uberlândia que me falou tão apaixonadamente de lá que afastou qualquer dúvida que eu ainda tivesse. Isso fazia umas duas semanas, mais ou menos. Conheci outras cidades no Triângulo Mineiro até parar no município mais próximo ao arraial, de onde achei que poderia pegar um ônibus pra lá, mas não havia nenhum, e acabei indo pra estrada pedir carona. Era longe, acabaram sendo várias caronas, fui pulando de um caminhão pra outro até que um carro veio reduzindo a velocidade ao se aproximar de mim, abaixando o vidro do caroneiro, e então dois rostos familiares apareceram, sorridentes.

– A gente se conheceu em Uberlândia – disse um deles, o que era desnecessário, porque eu me lembrava bem.

O carro parou. O cara que estava dirigindo desceu pra me cumprimentar e abrir uma das portas do banco de trás.

– Mundo pequeno, né? – ele comentou, apertando a minha mão. Concordei, talvez com menos entusiasmo do que ele esperava, acostumado que estava às coincidências.

Mas não tinha como ser mais grato àqueles dois, pela carona e por tudo o que vim a encontrar mais tarde no arraial, um dos lugares mais incríveis em que já estive. Enquanto arrumava o quarto em que eu ia ficar, a avó daquela menina me falava sobre como é bom sair de casa sem se preocupar com ter que chavear a porta. Da pequena varanda em frente ao quarto, eu via, olhando pra um lado, um imenso mar de montanhas de vegetação rasteira e, do outro lado, mais mar – o mesmo mar verde se perdendo ao longe. Um silêncio pontilhado pelo canto dos grilos e dos pássaros, vez ou outra um cachorro latindo, raramente uma moto ou cascos de cavalo. Fiquei ali sentado por no mínimo umas duas horas, contemplando a paisagem e desejando ficar lá pelo resto da vida.

– Um dos caminhoneiros que me deu carona até aqui falou que são trezentos habitantes no arraial, verdade? – eu tinha perguntado à senhora.

– Claro que não – ela respondeu, e por um momento achei mesmo que era um exagero, que não podiam ser tão poucos assim, mas ela completou: – São uns duzentos e cinquenta.

Mais tarde, saí pra conhecer a vila, já completamente apaixonado por ela. Eram só duas ruas, e ao final fui parar em um campo de futebol onde havia umas crianças brincando. À sombra de uma árvore, no fim do campo, entre várias meninas, reconheci aquela que me fez rir me chamando de “meu fío”. Ela me viu também, acenou sorrindo e, quando cheguei mais perto, falou, parecendo impressionada:

– É a segunda vez que te encontro hoje!

– Pois é – eu disse. E depois não resisti: – Mundo pequeno...


 


 

domingo, 17 de janeiro de 2021


 


 

Sem ninguém no porto, um aceno sem bússola.
Sumir pra sempre no longe.

Ser
essa matéria do tempo e ir ser
a primavera a cerejeira a flor
– ah por favor
me dê um gole só
desse estar sendo infinito.

Se
das fachadas dos edifícios
explodissem as selvas e se
ao derrubarem as paredes
vissem o Universo expandindo.

Mas
só mais um cigarro na noite
mais um cigarro na noite
na noite
não
não precisamos de outro fim do mundo.

Os lugares pra onde vamos, eles
chegam quando querem e
se querem.

Ou
numa rede num túnel
numa teia que espalhasse pelo chão
todo o dourado de Órion
Betelgeuse
Alfa-Centauro – a verdade é que
todas as janelas são o céu,
não só essa chuva escorrendo no vidro.

(Vê
que a soma das minhas partes
é muito maior do que eu.)

(E então levanta
a barra da saia
das nuvens pra ver também
se não sou eu do outro lado.)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021


 

não me traga até aqui pra repetir o que foi sempre
a quem interessa o desperdício de uma sintonia
em minha casa eu não uso fantasias hierárquicas
devolva à terra
não quero nada da arrogância com que se devoram
não me impressionam fogueirinhas de vaidades
eu não moro em fachadas
não me traga até aqui pra me odiar num personagem
se eu não posso te emprestar meus olhos
e você nem olha
mais um entre milhares de reis cegos