sábado, 28 de agosto de 2021

O amor existe, eu acho.

Pés descalços sobre a primavera,
corre sempre alguns passos à minha frente.

E é memória de um dia ter olhado nos olhos
e achar que estava enxergando pela primeira vez.

Sim, o amor existe, parece.

Tem o cheiro dos cabelos, o calor das mãos abertas
de alguém que não sei quem é, onde está, e que, no entanto,
vibra em algum canto do meu coração deserto.

E tem sorrisos. Lábios.
É muito vivo esse amor, se existe.

Agora o meu trabalho é no final do caminho das pedras,
semear e ser roubado, ou esmagado por máquinas;
agora eu sangro e suo e tenho o corpo sujo de fumaça
e já não penso sob o sol, secando a testa nas mangas;

mas se eu sonhasse à noite,
seriam sonhos de amor, eu acho.


 


 

sábado, 21 de agosto de 2021


(Diários de Machu Picchu #12)
A primeira vez que amadureceu, devia ter uns quatro anos, no sítio de um tio-avô
de quem gostava muito e onde sempre ia com a família passar dias seguidos.
Estava brincando com os primos e foram todos parar no alto de uma árvore
- e foi aí que aconteceu. Por toda a vida iria se lembrar de estar lá
no alto e da proximidade do céu entre as folhas, e então de ter olhado
para baixo e de compreender pela primeira vez, racionalmente,
o que era a queda e o que significava ser mortal.


 


 

Na primeira vez que amadureceu, tinha nove anos e meio e estava com o pai, que visitava um velho amigo, rico e influente, no começo de uma noite de sábado. Eles conversavam tediosamente no jardim de inverno e a criança deu um jeito de escapar, foi andar pela casa e acabou em um escritório que continha uma pequena biblioteca, o que para essa criança em particular era tão interessante quanto um quarto de brinquedos. Mas ela foi se interessar pelo livro que estava sobre a escrivaninha, e com toda a liberdade abriu-o e começou a ler. Descobriu que o amigo do pai tinha escrito em todas as margens, compulsivamente, coisas como "eles continuam tentando me derrubar", ou xingamentos, reclamações e as coisas mais estranhas que uma cabeça perturbada poderia pensar. Instantes depois, não era mais uma criança quem saiu daquele escritório.


 

A primeira vez que amadureceu, tinha acabado de completar nove anos e estava… Não, não gostava de se lembrar, muito menos de achar que algo assim pudesse ainda ter algum efeito sobre sua vida. E agora estava ocupado demais na organização de um protesto contra o monopólio da cultura norte-americana no mercado de arte nacional. Ele cresceu, suas ideias começaram a ser ouvidas. Pediram-lhe um roteiro, já tinham dois grandes atores para os papéis principais, ele quis começar com uma narração em off. "Na primeira vez que amadureci", dizia o protagonista, "eu tinha acabado de completar nove anos e estava sentado no colo do meu professor de inglês, com as mãos do cara dentro da minha cueca". Parou. Não, não gostava de lembrar, definitivamente, aquilo não prestava nem como metáfora política.


 

sábado, 14 de agosto de 2021


 

Ainda ontem eram animais estranhos lascando pedras pra virarem flechas
Hoje mesmo, quando amanheceu, ainda eram animais estranhos lascando pedras pra virarem flechas
Na hora do almoço, ergueram civilizações sobre muito sangue
Só que eu não posso estar triste
O momento é de fazer apostas em hipódromos políticos
Ou será que não aprendemos nada com os grandes mestres artistas de algoritmos
Ainda agora sustentam civilizações com sangue
E fogem ao menor sinal de verdadeira humanidade
Não muda nada se dói em mim
Me falta ouvir o oráculo das suas celebridades
Mais sombras áridas a transbordar de celulares
A fumaça do café, a fumaça de um cigarro subindo em espirais brancas, cinzas e
Maçãs na tarde, quem sabe o vermelho imprevisto das camélias
Nem sei mais o que eu digo
O pôr do sol através da chuva lambuza de luz o concreto
Mas nunca se está longe o bastante pra se deixar de ouvi-los
Gritando orgulhosos
Enquanto ainda atiram suas flechas


 

sábado, 7 de agosto de 2021


 

O mofo não saía da sua parede, o calo no calcanhar do único sapato bom que tinha pro trabalho. Era muito baixo, magro e desajeitado, as pessoas costumavam tropeçar nele, literal e metaforicamente de maneiras até demais. Ao que tudo indicava, seu maior defeito, além da falta de bíceps definidos, era gostar de poesia e vodca barata. Mas também pagava o dízimo - o farelo da migalha que sobrava - e trabalhava como um condenado de segunda a sábado.

E amava Lili, que não amava ninguém. Menina de igreja numa faculdade de artes, artista plástica extraordinária, um amor, cheia de vida e curiosidade. Foi ela que lhe falou pela primeira vez sobre Andy Warhol, Gaudi, foi ela que lhe ensinou o que significava a palavra "vanguarda". E gostava dele, mas não assim, nem queria pensar nisso agora, eles eram tão jovens. Até que ela conheceu o filho de um empresário meio famoso de uma capital meio conhecida em um país meio importante e desapareceu.

- Arte, ok, desde que seja bela - repetia o herdeiro que ela tomou por príncipe encantado. Dizia isso e depois dava uma risadinha arrogante, de quem conhece com profundidade a Matemática das Belas Artes, e como se a sua noiva fosse uma criança ingênua brincando de pintura em uma escolinha de fundo de quintal.

Ele não discutia política, é claro, mas achava que se todo mundo se esforçasse bastante, mas bastante mesmo de verdade, qualquer um poderia se tornar assim como ele! Falava sem parar e sempre encontrava um jeito de fazer a pessoa que ouvia se sentir mal consigo mesma, e ainda achar que se reagisse, estaria apenas confirmando que ela não prestava. Meio que o contrário do amor, ele era. Mas quando falava de amor, ninguém mais tinha razão, ninguém além dele mesmo compreendia.

O mofo não saía da parede. O calo no calcanhar, migalhas.