sábado, 27 de maio de 2017


O próximo ônibus pra El Bolsón sairia só na noite seguinte, então resolvi voltar a Puerto Madryn e aproveitar pra ver as baleias. Da primeira vez que passei por lá, elas ainda não tinham chegado. Desembarquei às oito da manhã. A cidade estava fria e mergulhada numa névoa densa, e fui direto a um café pra esquentar o corpo e espantar o sono. Foi a primeira vez que reparei no item “Submarino” em um cardápio na Argentina. O garçom explicou que era uma taça de leite fervendo e vinha com uma barrinha de chocolate que você afundava no leite pra derreter. Decidi experimentar. Conversa vai, conversa vem, o garçom me contou que a “névoa” lá fora eram na verdade cinzas vulcânicas que estavam se espalhando desde o Chile. Fez até um desenho num guardanapo pra mostrar como o vento estava arrastando as cinzas pro leste e nordeste, passando por Buenos Aires, pelo Uruguai e chegando até ao sul do Brasil. Ele disse que eu corria um risco muito grande indo pra El Bolsón, porque era muito perto do vulcão e estaria carregada de cinzas.

Passei numa oficina de turismo pra saber o horário da maré alta, que é quando as baleias chegam mais perto da praia, e aproveitei pra perguntar a respeito de El Bolsón. A moça falou que lá estava melhor que em Puerto Madryn – que havia um alerta, sim, mas que estava tudo bem e que eu não correria risco nenhum. Saí de lá um pouco mais tranquilo, e agora tinha até às cinco da tarde – hora da maré alta – sem absolutamente nada pra fazer. Pensei em ligar pra umas pessoas, acessar a internet em algum canto, mas depois me lembrei de que no Brasil era Dia dos Namorados e fiquei ligeiramente – e ridiculamente – deprimido. Não ajudou muito quando entrei noutro café e encontrei tocando uma versão eletro-bossa de Is This Love. Enfim, é impressionante a quantidade de estados emocionais diferentes que uma pessoa pode experimentar ao longo de um único dia.

O céu estava limpo à tarde, o sol brilhava forte e só uma fina faixa cinza cobria o mar na linha do horizonte. Meu humor estava bem melhor quando embarquei no táxi pra El Doradillo. O motorista ficou calado durante todo o trajeto, e achei até melhor assim. Estava animado pra ver as baleias. Não sei nem expressar o grau de fascinação que tenho por esses bichos. Quando chegamos, elas estavam lá, bem perto da praia. E durante quarenta e cinco minutos, eu fui uma completa criança. Corria de um lado pro outro, dançava acompanhando elas, conversava em baleiês – lembrando o filme Procurando Nemo – e ria porque tinha que falar o baleiês em espanhol, já que estávamos na Argentina. As baleias saltavam, espirravam água, giravam, batiam as nadadeiras na superfície, ficavam um tempo com a cabeça fora d’água enquanto pássaros lhes faziam uma limpeza. Pareciam brincar. Pareciam absolutamente felizes. E eram absolutamente livres.

Na silenciosa viagem de volta, encostei a cabeça no vidro e fiquei observando o sol se por, sentindo que as palavras já não importavam, que jamais alcançariam o êxtase que eu havia experimentado. Pedi ao taxista que ele me deixasse na rodoviária e ele quis saber pra onde eu ia. Era uma pergunta e tanto naquele momento reflexivo. Fiquei tentado a dizer ninguém sabe pra onde vamos meu amigo, mas no final falei simplesmente que ia pra El Bolsón. Ele também disse que eu colocaria a vida em risco indo pra lá, por causa das cinzas vulcânicas. “Na oficina de turismo me disseram que não”, falei. “Me disseram que sim”, falou ele. Pensei um pouco naquilo tudo e concluí: “Bom, acho que amanhã vou saber ao certo”. Ele sorriu: “Então amanhã você me conta”.

Encostei outra vez a cabeça no vidro e sorri também. Ah, sim. Eu gostaria mesmo de contar.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Tinha um poste no meio do caminho,
da verdade,
da vida.


Faltou luz e todos os sorvetes da cidade derreteram.

Fiquei olhando o teto antes de dormir pensando eu pago as minhas contas lavo as minhas cuecas troco as lâmpadas queimadas os pneus furados as pastilhas contra insetos não bebo não fumo não falo palavrão nem conto piada que todo mundo conhece e é assim que Ele me trata.

Pode ser Ela também.

O Acaso, a Providência ou por que não Deus ou a Deusa.

Ia dizer eu só acreditaria num deus que risse de si próprio mas acho que ele ri mesmo se existe.

Ou ela.

Seja uma consciência ou não essa força que rege os destinos da gente tem um senso de humor afiadíssimo e uma noção de Bem e Mal muito diferente do que se imagina.

Existe uma Ordem, claro, que é quando os sorvetes estão congelados por exemplo, mas tem que ver que isso aí é só um entre infinitos eventos possíveis no Caos, e não é legal ficar forçando pra que seja sempre assim dizendo que “é assim que tem que ser ou se não você vai arder pra sempre no fogo do inferno”.

Quer dizer, a Ordem só faz sentido quando é natural porque pensa bem, se fossem obrigatórios, ou quando são impostos, se forem exigidos incondicionalmente o amor, a bondade, a gentileza, então eles não existem de verdade, certo? Se forem apenas uma imitação de determinados gestos, se apenas o cumprimento mecânico de dogmas, então é só isso que eles são, né, cópias vazias.

Ok, Acaso, tá perdoado por me deixar sem sorvete. Agora vá e não peque mais.

É muito chato ter que ficar perdoando o tempo todo.


sexta-feira, 12 de maio de 2017



                              (     ) Córdoba, Argentina

                              (     ) Curitiba

                              (     ) João Pessoa

                              (     ) Porto Alegre

                              (     ) Salvador

                              (     ) Santiago, Chile
Arranha
céus entre árvores anônimas em seus pequenos recortes na calçada, mulheres de tantas pernas pra que tantas pernas meu deus pra que tantas faces e quem é que ainda canta, quem é que ainda ama, quem é que pode informar onde a gente colhe uma jabuticaba, os carros passam rápido os cachorros passam rápido responde rápido o whatsapp e rápido rápido a vida nunca mais foi besta ó Carlos. só que né. tá sendo.

(Diários de Machu Picchu #07)

domingo, 7 de maio de 2017



Estive outra vez sob os holofotes e não gostei. Meu amor se espalhou pra muito além de uma identidade, até que não soubesse mais ter direção. Eu também era a plateia atônita ao me ver ali tão quieto, uma estrela implodida no peito: quando eu cantava a dor, nem sempre doía, mas quando me calei foi porque a dor ultrapassava qualquer possibilidade de expressão. Meus filhos, meus irmãos, meus companheiros de luta levaram pro mundo pedaços de mim e eu estava sozinho na berlinda, e meu momento presente havia se tornado um vácuo. Você vai se lembrar de alguma vez que eu te fiz rir, mas não de que hoje é meu aniversário. Você vai percorrer estradas que eu abri pra te ver livre ou se abrigar em fortalezas que ergui, mas não vai citar meu nome em seu discurso de vitória. No fim, nem era mais pelos aplausos, nem era mais pra alimentar a alma do meu público que eu me movia: eu era um títere que recusou todos os titereiros e que por isso quase foi estraçalhado por eles, mas que aprendia então o próprio impulso. O que sobrou, o que está aqui não é minha presença. Você me vê falar? Pode enxergar lugares em que estive, alguns percursos lógicos e emocionais, desenhos ruins, fiapos de boas ideias? O sujeito deles, se existiu, passou faz tempo. Isto, agora, é só você escolhendo espelhos.