sábado, 27 de agosto de 2022



CAPA
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
DESCRIÇÃO DO ESPAÇO CÊNICO
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(Novas cenas em breve.)
CENA 6

(A música termina. Foco sobre Mano, que fala ao microfone, a princípio, mas vai se afastando ao longo da fala.)

MANO: Então eu tive uma ideia que ia mudar tudo. Uma intuição! Sim, eu tive uma intuição, um insight, uma revelação, até, só podia ser, aquilo ia dar certo! Aquilo ia mudar tudo! Eu fiquei pensando, a gente voltou praquela praia, todos reunidos de novo, pra relembrar, pra reviver aquele dia e pra isso… E por isso, e por alguns instantes, pelo menos… Eu… Vocês viram, não viram? Ela estava aqui, ela falou comigo! Ela tocou no meu rosto e eu escutei a voz dela! Você escutou a voz dela? Eu escutava a voz dela, e a Karina também, então aconteceu da gente se encontrar e ela apareceu, então eu pensei que se foi assim dessa vez, então poderia ser de novo… Não é? Era uma ideia boa, mas eu não tinha como provar, ia ser difícil reunir todo mundo outra vez, eu ia ter que inventar alguma história louca, sei lá, como é que você orquestra o encontro de pessoas que não tem a menor intenção de se ver de novo? Ninguém, eu acho, ia querer se reunir outra vez só pra testar uma ideia. Não, mas não era uma ideia, era uma coisa que eu sabia, ia dar certo, ela ia aparecer outra vez, é claro que ia. Não ia? (Pausa.) Não ia?

(Foco se apaga. Sons de pássaros cantando e luz subindo aos poucos sobre Diogo e Ludo, que estão dormindo próximos um do outro. Os dois acordam e percebem um ao outro mais ou menos ao mesmo tempo.)

DIOGO, levantando-se: Eu não sei como eu dormi. Está tarde? Eu preciso voltar pra minha casa. Isso era um galo cantando?

LUDO: Uma coruja.

DIOGO: Me desculpe, não era pra eu ter ficado aqui. Já é de manhã. Você já está bem.

LUDO: Ah, sim, mas não vá embora ainda.

DIOGO: O que foi aquilo que aconteceu?

LUDO: O quê?

DIOGO: Você se transformou na Helena.

LUDO: Eu… é? (Pausa.) Acho que nunca tinha acontecido na frente de alguém. Eu não tenho como saber, isso tudo é uma bagunça. Vem cá, senta aqui. (Diogo vai sentar-se ao seu lado.)

DIOGO: Eu tenho que ir embora.

LUDO: Não sei quando isso começou, eu tinha uns quinze anos quando descobri. Eu achava que era normal apagar, às vezes, ficar fora do ar umas horas, depois voltar… sempre foi assim. Mas demorou pra eu descobrir sobre a Helena. Pra acreditar, então… até agora eu não consigo acreditar direito.

DIOGO: Eu tive uma ideia louca.

LUDO: Não fala nada. (Beijam-se. Mano entra nesse momento e os vê.)

DIOGO, levantando-se: Eu tenho que ir. (Vê Mano. Pausa breve.) Eu estava de saída. (Vai saindo.)

MANO: Não, eu tenho que falar com você, também.

(Blecaute.)

(Luz sobre L.)

L: Eu nunca teria voltado praquela praia se não fosse uma ideia tão boa. Uma dessas grandes chances que não é pra todo mundo que aparece, sabe? A oportunidade que vai mudar tudo. Agora eu nem lembro mais de toda a historinha que eles inventaram. Um empreendedor local com uma grande ideia, uma chance que eles sabiam que ninguém ia querer perder. Boa demais pra ser verdade, até, eu deveria ter visto, mas eu sou um completo otário. Como é que eu ia me perturbar por causa de um lugar, né? Por causa de uma lembrança que… eu nem... lembrava… mais? (Pausa breve.) Ãh?

(Blecaute.)

(Luz sobre Karina e Helena, exatamente como na cena anterior, em que Karina falava com Diogo.)

KARINA: Eu via tanta vida em você.

HELENA: Não faça isso.

KARINA: Eu não sei se eu consigo lidar com essa loucura.

HELENA: Não é loucura nenhuma. É perfeitamente lógico. É real, Karina.

KARINA: "Lógico"... Eu não… como é que você consegue?

HELENA: Eu posso melhorar… Eu acho… Eu tive uma ideia que…

MANO: Pode mudar tudo? (As duas ficam sem reação. Cada frase dele é uma tentativa de iniciar uma conversa, mas todas continuam deixando-as sem reação.) Desculpe, eu marquei com todo mundo aqui nesse horário. Eles disseram que vocês iam estar juntas. Eu fiquei feliz por vocês. Quer dizer, e que bom que vocês conseguem conviver com isso numa boa. Eu achei… sei lá, poderia ser difícil pra algum de vocês ver o ex com outra pessoa. Ah, eles devem estar chegando logo, que casal inesperado, cara! O Diogo e o Ludo. Vocês… sabiam… que eles estavam juntos… né?

(Karina olha para Helena com indignação.)

HELENA: Eu… era uma coisa que…

KARINA: O quê? Você não sabia?

HELENA: Nesse caso eu sabia, mas era o que eu estava…

L: Eu posso saber o que vocês estão fazendo aqui?

KARINA: Isso aqui já está ficando muito além da minha capacidade.

MANO: Não! Espera, não vá embora! Por favor! Eu explico!

L: Você vai explicar o que eu estou fazendo aqui também?

MANO: Sim, você foi atraído aqui por uma oportunidade de negócio, mas eu estava inventando tudo.

L: Eu… como é que é?

KARINA: Não venha atrás de mim.

MANO: Não!

HELENA: Karina, espera! É importante!

L: Pois eu também não pretendo participar dessa palhaçada.

MANO: É só mais um minuto! Vocês não podem ir!

DIOGO: Cheguei tarde? Karina? Você já vai?

MANO: É agora! Cadê o Ludo? Ela já vai voltar! Vocês vão ver, eu tenho certeza!

HELENA: Quem, mas do que é que você está falando?

PÂMELA: De mim.

(Música. Pâmela caminha até o microfone sendo transmitida ao vivo em todos os telões, as luzes piscam de maneira dramática. Foco sobre ela quando ela para diante do microfone.)

PÂMELA, ao microfone: E agora, você se lembra de como era estar presenciando um milagre?

(Silêncio.)

sábado, 20 de agosto de 2022

não não feche os olhos 
para o que tem por dentro 
a obrigação de ser é que está morta 
agora 
tempo nenhum te alcança 
os números não sabem nada de você 
essa luz quente do mundo 
sim foi feita para se beber 
não não deixe o seu coração num canto 
não o abandone assim por trocados 
lá fora é que é pouco 
hoje 
vai ser para sempre a sua única chance 
aquilo que segue adiante 
é o que tem vento nos cabelos 
o maior desperdício é não transbordar 
não não aceite menos que isso 
ou até as pedras serão mais humanas 
não não permita a poluição do abraço 
por coisa alguma que não possa amar


(Diários de Machu Picchu #15)

sábado, 13 de agosto de 2022


(Diários de Machu Picchu #30)
Quando voltei a morar em Curitiba depois de ter ido embora duas vezes, ficou bem claro que não havia mais nada para mim por lá. Foram umas semanas sombrias em que me debati sem rumo, até finalmente arrumar as malas e ir ao encontro da vida que me esperava. Só o que me manteve mais ou menos são, naqueles dias, foi a presença do meu velho amigo Joaquin, que, por acaso, também estava dando uma chance à capital paranaense em sua vida ainda mais nômade que a minha. Aliás, tinha sido justamente esse nomadismo que nos aproximou cerca de dez anos antes, em um verão inesquecível da nossa juventude no litoral catarinense.

Joaquin parecia se encaixar ainda menos do que eu naquela capital, e muito logo se criou uma certa expectativa sobre qual de nós dois aguentaria menos tempo. Naqueles dias, ele estava particularmente incomodado com o fato de que uma das primeiras perguntas que ouvia ao conhecer alguém era "O que você faz?", referindo-se, obviamente, a uma profissão ou trabalho. E embora esse não fosse um comportamento exclusivamente curitibano, Joaquin achava que a pergunta era mais desagradável ali que em outros lugares, porque ali, dizia, as pessoas pareciam se pautar muito mais por questões de status social. Por isso, tinha desenvolvido o hábito de dar as respostas mais variadas à pergunta, muito raramente mencionando profissões, e indo das mais banais (como "panquecas" ou "estrelinha") às mais absurdas (como "coleção de moedas asiáticas do início do século passado"). E toda vez, ainda, depois de sua resposta inventada, acrescentava: "Mas não só isso."

— Eu meio que roubei essa ideia — confessou-me, um dia —, de uma garota que conheci na Bolívia e que respondia assim sempre que perguntavam a idade dela. Dizia o primeiro número que passava pela cabeça e mandava o "Mas não só isso". O que, aliás, serve pra quase toda resposta que a gente dá na vida…

Lembramos desse caso no aniversário dele naquele ano, quando nos encontramos para ir juntos ao Largo da Ordem comemorar com amigos. Repetimos tantas vezes o "Mas não só isso", para tantas situações e assuntos, que ele já estava um pouco desgastado quando saímos de casa, logo depois de anoitecer. Àquela altura, falávamos sobre as contradições entre a liberdade e as convenções sociais, distraídos demais para nos dar conta do caminho que estávamos escolhendo para ir ao centro naquele horário. Assim, quando pegamos a Visconde de Guarapuava lá o início, saindo do Cristo Rei, passávamos tranquilamente embaixo da trincheira enquanto Joaquin dizia:

— Às vezes, eu acho que sou livre até demais. Sabe quando você está tão solto que acaba parecendo mais com… — nesse instante, chegamos ao ponto mais alto da rua e vimos-na se estender para muito longe, coberta de pontos vermelhos dos faróis dos carros, completamente imóveis no congestionamento, de modo que Joaquin concluiu seu pensamento como se estivesse desistindo de falar, lenta e desapaixonadamente: — uma folha arrastada pela correnteza da Criação.

O silêncio nos minutos seguintes era cheio de impaciência e pensamentos tristes, carregado de toda frustração e incerteza que vínhamos carregando naqueles dias, até que ele decidiu colocar um pouco desses sentimentos em palavras:

— Você não se pergunta, às vezes, se não somos mesmo alguma dessas piores coisas que já ouvimos a nosso respeito? Se não somos só uns poços sem fundo de egoísmo, ou uma farsa completa, ou qualquer coisa tão abjeta que não merecia nem estar no mundo?

Pensei sobre as pergunta e depois respondi, devagar:

— Pra começar, acho que eu nem consigo confiar em alguém que nunca tenha se perguntado isso. E depois que… Sim, eu acho que nós somos. Tudo isso, talvez até pior. As piores pessoas do mundo. No mínimo, com toda a certeza, nós somos o pior que podemos ser. Mas…

Deixei a frase no ar sabendo que ele a pegaria, e foi interessante ver seus olhos se acendendo de repente, mais brilhantes que a luz de todos os postes e faróis de carros à nossa volta, enquanto dizia em voz baixa, claramente reanimado:

— Mas não só isso.


 


 

sábado, 6 de agosto de 2022


 


 

Ali do outro lado estavam promessas petrificadas, seus olhos a meio caminho de se abrirem, eu imaginava, porque não restava outra coisa a fazer, que elas explodiam em risadas pela praia, o corpo cheio de vida e sal do mar, mas então a falta de pulsação gritava outra vez mais alto.

Quão longe eu tive que ir apenas para ver meus sonhos tão despedaçados, como se me faltassem mãos para cultivá-los, como se meu coração fosse menor, pior ou mais sujo que o de tantos outros em que os frutos transbordavam, se eu era o primeiro a preparar a terra com suor e afeto, primeiro a arrancar ervas daninhas, primeiro a acreditar, disposto e desperto desde muito antes do sol nascer.

Mas precisava não haver mais noites para que eu deixasse de sonhar, que eu não tivesse memórias, nem um corpo ou a poesia ainda quente em minha alma, então quem sabe eu deixasse de amar, se eu fosse um outro, talvez, se fosse menos como aquele que eu não era e que insistiam em apontar em mim.

Ali, ao alcance de um gesto, feito mármore, para sempre congeladas no ínfimo instante que antecedia sua existência, as esperanças todas, o mais puro bem, todo o sentido de sermos carne e de termos um nome, ou de vagarmos há milênios sobre esta rocha errante no espaço, aos poucos se desfaziam, esfarelando-se, arrastados pelo vento como se não fossem nada, até que já não fossem nada, um só nada, o nada, nada.

Mas precisava de muito menos que o nada para eu não ser.