sábado, 31 de dezembro de 2022


 


 

até eu me transformar pra sempre em só-poesia… quase o contrário da fuga, um submergir completo em realidades combatidas pelo medo ou pela ignorância, e desaparecer nos fatos onde o mundo encena enredos viciados… não, nunca mais o deserto de uma só alma implodida, quanto menos esses ásperos saberes sem nenhuma outra finalidade que limar o voo, bem mais pelo prazer da queda que apontando um sol nascente… ah, sim, compartilhar a substância das cantigas, não restar nesta matéria um único átomo sem versos… nem remotamente interessado em cascas ocas atirando pedras, nada em mim precisa ou quer lembrar respostas decoradas, qualquer outro lugar é um paraíso diante do abandono, aí, até onde se pode ver, só o que se propaga é o vácuo… porém… contudo, este ímpeto constantemente em tempestade, aceito, mais que isso, desejo ser o som, as margens e as sementes de todas as rimas, já vim tão longe, fora disso há muito pouco que me espere… uma ou outra bondade, um mar imenso de ressalvas, olhos fechados, longas línguas de um sentido amargo… enquanto eu lírio, bem depois de eterno, um ritmo, a expressão sincera, é impossível me tocar o que não dance em todos os detalhes…


 

sábado, 24 de dezembro de 2022


 


 

Acho que o que ele mais gostava era de gente que cuida da própria vida.

Gente que não atira pedras porque sabe que também tem pecado, gente que não fica falando de ciscos nos olhos dos outros tendo uma trave nos seus. E sabe quando ele disse que andava com pecadores porque quem precisa de médico é doente? O que não cola pra mim nessa história é que não tinha um mundo saudável e sem pecado fora dali. Acho que o que fazia ele deixar de andar com uma pessoa não era ela não precisar dele, não existia alguém que não precisasse. O problema era a pessoa não enxergar que precisava. Provavelmente porque estava ocupada demais cuidando da vida dos outros.

Ou porque vivia pendurada em livros de regras — também tem isso, ele não gostava de quem vive pendurado em um livro de regras. "Ai porque o livro 2, capítulo 15, versículo 22, parágrafo 9, inciso 24 diz que…" Não, amigo, não diz não, é você que está dizendo. E mesmo que dissesse, todo mundo sabe que você escolhe só uma regra ou outra no seu livro pra seguir. As regras que você escolhe pra seguir e as que ignora dizem muito sobre você. Mas o pior dessa história não é nem você seguir umas regras só porque sim e deixar de seguir outras por qualquer desculpa, é você achar que todo mundo tem que seguir as mesmas regras que você. Ou seja, no fim, mais uma vez, o pior é você ficar cuidando da vida dos outros.

Tem também a questão dos ricos, que ele disse que era mais difícil entrarem no céu do que um camelo passar no fundo de uma agulha. Um dia, ouvi dizer que fundos de agulha eram portas pequenas na entrada das cidades, e que, pra um camelo passar por elas, tinha que abandonar toda a carga e meio que rastejar. Mas mesmo que seja isso, ele disse que era mais difícil um rico entrar no céu, não foi? Mais difícil. E se for só isso, se é só abandonar a carga e rastejar, ainda assim, quer dizer que não existe rico no céu, porque ou a riqueza é abandonada, ou nada feito. Mas você não está lá batendo com seu livro na cabeça dos ricos pra dizer o que eles têm que fazer pra entrar no céu. Pelo contrário, eles são os seus modelos, seus heróis, os vencedores. Você come os restos da mesa deles, imita as aparências, segue as dicas dos coaches pra ser um deles. Enfim, as pessoas que você escolhe pra ficar se metendo na vida e as que considera exemplos também dizem muito sobre você, sabia?

Ah, sim, e com certeza, uma das coisas que ele menos gostava era violência. Não é verdade que ele andava desarmado porque não existiam armas naquele tempo, até porque existiam armas, sim: eram espadas. Um dia, vieram prendê-lo e um dos seus amigos pegou uma espada e cortou a orelha de um servo. Pois ele não foi lá e curou a orelha cortada? Isso porque a arma que ele tinha era o amor, foi isso que ele veio ensinar, isso era o que ele tinha pra oferecer. "O maior Mandamento é o Amor", ele disse uma vez, palavras dele. E teve muita gente que aprendeu, na época, mas dois mil anos depois, mesmo entre os que se dizem seguidores dele, isso já está fora de moda.

Uma pena. Se mais gente cuidasse da própria vida e, pros outros, espalhasse amor, com toda a certeza, já estaríamos em um mundo bem melhor. Mas cada um sabe de si, não é assim? Pois é. Só estou lembrando essas coisas porque hoje é aniversário dele e, por isso tudo, ele é uma pessoa que merece muito ser lembrada. E que faz uma falta enorme. Enfim, onde quer que você esteja, Jesus, receba o meu abraço. Saudades, mano.


 

sábado, 17 de dezembro de 2022


Olho
(Cida Carvalho, 2013)
É quase de manhã, uma pilha de coisas por fazer, três feridas, tem que levar os sonhos pra fora estão começando a cheirar mal, não deveria estar tão frio assim em dezembro, todo mundo mergulhado em um transe profundo, talvez em janeiro eu durma um pouco, devia ser proibido marcar reuniões nos sábados, os passarinhos começaram a cantar, isso é sangue, uma chuva aos pouquinhos e esse vento às vezes, estou cansado demais, precisava ir na padaria comprar pão, vem sempre alguém enfiar uma agulha embaixo da minha unha, se eu não terminar este texto o mundo acaba, as crianças querem quartos separados, não vou ter mais do que um vislumbre de férias, quando haverá uma revolução de verdade, o galo cantou, o único erro de português que me irrita de verdade é a gramática, pra quem era esse relatório mesmo, o café está doce demais, nem olhando de perto eu consigo enxergar algum herói debaixo da publicidade, uma luz cinza se espreme entre a cortina escura e a parede em volta da janela, ainda não sei o que significa ser alguém, outra hora eu te conto a história toda, uma angústia uma agonia, a longa lista de regras, pessoas conversando na calçada, as três frases que ainda faltam, nenhuma visão, as copas das árvores balançam, de uma hora pra outra já não é mais amanhã.


 

sábado, 10 de dezembro de 2022


 

Seu rosto era a mancha sobre a correnteza 
Eu não sabia se te ouvia ou se era a seiva 
Esse cordão de relva enrolado em seu pescoço 
Tivesse um coração de pedra, ao menos, e ele pulsaria 
Se eu arranhasse o concreto, acabaria com lama sob as unhas 
Traça um número, ele nunca cicatriza as pétalas 
Com qual arquitetura você encobre esse vazio pulsante 
Pisa os seus escravos, o meu peito é aquele que transborda lava 
Menos invisível que uma distorção constante na paisagem 
Até que se perceba o plástico e a tinta 
E que são de papel essas correntes em seus tornozelos 
Pisco os olhos para misturar constelações e cinzas 
Nada pode me alcançar no coração das cores 
Silenciosa dança 
Ainda chegará o momento em que verei a noite 
Com um sopro atravessar a ordem da chuva 
E amanhecer com vida


 


 

sábado, 3 de dezembro de 2022


 

as suas melhores ideias
nunca foram maiores que uma xícara
ou mais belas que essas pedras cinzas
tão comuns em beiras de estradas
colocávamos
um dedo sobre as suas artérias
e dizíamos não há vida
braços
unhas
olhos iguais aos nossos porém
desfilados com soberba
a sua moralidade acompanhava qualquer
coisa como os ciclos lunares
amontoados de palavras que só por
fluírem fácil eram despejados em tons de
verdade
hoje um punhado de medos e ameaças
você me toma pelo seu espelho?
acha que os meus passos se orientam
como os seus por farsas?
acusações de mágoas
em excesso ou seus parâmetros súbitos
do que é infantilidade ou sábio
sequer
me tocam
talvez somente
pra causar piedade
mas não é que eu me importe
eu vim aqui trazido por versos
te dizer que eu sinto muito mas
não é que eu estivesse contando
eu simplesmente não tenho como esquecer
quantas vezes você olhou pro lado enquanto
eu estendia a mão
pra oferecer ou pra pedir ajuda
não tenho como esquecer porque foram
todas
as vezes
não tenho como esquecer se ainda agora
você exige
por trás de portas fechadas
que o mundo se mova em sua direção
às custas de quem quer que seja que lá fora
esteja empurrando
ou seja esmagado



 


 

sábado, 26 de novembro de 2022


 

A vida é bela, a vida é doce, a vida é maravilhosa, 
Agita-se em seu ponto de equilíbrio, quente e 
Densa como uma estrela nascente, 
Aponta uma direção, diz olha lá, veja 
O que eu preparei para os seus dias, 
Você vai ver e é uma coisa linda, absolutamente 
Magnífica, acachapante, inacreditável, 
A vida é uma arquiteta exímia, uma artesã esmerada, 
Ela traça a forma perfeita e ela mesma 
Acorda em seus olhos com o nome de desejo, 
Então a vida arde, 
A vida te arremessa para frente, e simplesmente 
Não permite que você se recuse a ela, 
Aí você não se recusa a ela, 
Calcula as rotas, os recursos disponíveis e percebe que 
Vai te custar tudo, mas você não se importa, 
Você paga o que for pelo milagre anunciado, 
Sólido, visível, inegável no horizonte, 
Seu destino é claro, é imenso, justifica tudo 
E está logo ali, é preciso apenas estender a 
Mão, 
Você estende a mão, estica os dedos, está 
Prestes 
A tocar 
A mágica, 
Quando 
De repente ela não há mais, 
Some, se esfuma, dissolve com o vento, 
Se é que alguma vez existiu, 
Do que é que você está falando, abaixe a cabeça, 
Ajeite a camisa, 
Trabalhe.


 


 

sábado, 19 de novembro de 2022


 


 

Eu naqueles labirintos verticais de Ouro Preto pensando se era possível me apaixonar mais por um lugar, acho difícil. Uma sensação de séculos quase pesando no peito, revestindo tudo ao redor com um brilho solene, mas também um colorido de agora, e algo como estar sempre nadando em direção à superfície embora o ar não falte. Às duas da tarde, eu já havia pensado na palavra "mágica" e ainda não sabia nem da metade.

Museus, igrejas, artes de tantos tempos se misturavam entre os paralelepípedos, um pouco de São Francisco, um pouco de inconfidência e ainda um pouco de versos pastoris, não sei por que pensei em Jéssica quando visitei a casa de Tomás Antônio Gonzaga, mas logo em seguida encontrei este escrito em uma parede:


Fazia uns sete meses que não eu não conversava com Jéssica, por pura inércia do dia a dia, e isso era um dos períodos mais longos que já tínhamos ficado sem nos falar. Nem sei por que a lembrança, mas fotografei aquele verso ainda pensando nela, um súbito nó de saudade apertando a garganta.

Acabei parando em um café-livraria ali perto, um lugar de ares sofisticados quase que só pelo prazer do contraste com tudo ao redor, e meu pensamento inquieto já tinha estado em milhares de épocas e de lugares desde a visita à casa do poeta. Aliás, já quase abria um caderno para escrever meus próprios versos quando chegou o café e eu lancei um olhar para a rua através da fachada de vidro, repousando no movimento de uma saia florida.

Nossos olhos se encontraram, e os dois levamos ainda um tempo para entender, acreditar, não sei, levamos um tempo para dizer o nome um do outro nas nossas cabeças e só então ficar absolutamente perplexos.

— Mas como? — foi só o que ela disse quando entrou na livraria.

Eu não saberia nem por onde começar a responder aquilo, mas não achei difícil de me contentar apenas com o abraço de Jéssica.


 

sábado, 12 de novembro de 2022


 

Já estive muito além da mais completa farsa, muito 
Além de conhecer toda a verdade, já estive 
Muito além do olho da rua, muito além de 
Entre seus braços, 
Já tive muito mais do que vontade de morrer e já 
Vivi demais, já vi demais, fechei meus olhos 
E já me humilhei bastante, 
Achei que eu fosse mais que isso, 
Fui embora cedo e já 
Dei muito murro em ponta de faca, 
Falei bem mais do que devia 
E me faltou de uma palavra a todas, 
Só eu estava lá 
(Mas se mudei, não era eu que estava) 
Nem é sobre você, também, mas meu bem, 
Não tire o corpo fora, 
Já escutei até o final 
E já me distraí bastante, 
Já tudo, 
Já nada, 
Já já 
E já na mais absoluta ausência 
Até do tempo


 

sábado, 5 de novembro de 2022

Era uma vez um conto que queria ser um soneto. Como era azarado, nasceu logo aqui na periferia da literatura, o pobre coitado.

Zombavam dele por onde ele ia, dizendo:

— Ah lá, o continho abestalhado quer ser soneto.

E todo mundo ria.

Mas um dia o pai dele, preocupado, decidiu procurar um professor com doutorado. Então levou seu conto para um exame atento do doutor, que disse:

— Filho, ignore esses perversos. O fato é que você é um soneto pronto, só é preciso colocar-se em versos.


 


 

sábado, 29 de outubro de 2022


 

Não se pode dizer que algum dia 
Chegaram ou chegarão a atravessar a vida 
Você pode vê-los à margem, receosos até mesmo 
De molhar os pés, a menos, talvez, 
Que alguém fantasiado de autoridade (especialmente divina) 
Diga tá ok então desta água bebereis 
Mas só um pouco 

Um bando de corvos e palhaços se alvoroça ao seu redor 
Gargalhando de sua credulidade estúpida, enriquecendo 
Às suas custas e ilicitamente a olhos vistos, enquanto 
Disparam as ordens mais disparatadas 
Agora jogareis esta água suja no cantil do vosso irmão 
Agora sobre esta água deitarei um século de sigilo 
Agora esta água é só minha 
Que morram de sede, eu não sou coveiro 

Odeiam sobretudo as almas livres, morrem de medo de ideias, 
E do fato de que a água é simplesmente de todos 
De que há água para todos 
De que é possível mergulhar de cabeça e de que há mundos inconquistáveis nas profundidades 
Por isso desperdiçam a existência construindo jaulas e empunhando armas de fogo 
Ajoelhados diante de qualquer pedaço de lixo 
Para onde os seus verdadeiros ídolos apontem dizendo ali está Deus 

Não 
Não se pode dizer que algum dia 
Chegaram ou chegarão a amar 
Apenas que compraram uma porção de afetos 
E que os arrastaram às masmorras em que soterrados 
Morrem décadas mais tarde discursando enfurecidos contra 
Um suposto mundo lá fora 
Onde rios imaginários 
Vorazmente engoliriam seus tesouros embolorados se 
Alguma vez 
Sequer tivessem ousado se molhar


 

sábado, 22 de outubro de 2022


 

Como alimentar uma histeria coletiva. O nós contra eles, de novo a batalha final entre o Bem e o Mal, a ideia preguiçosa de uma solução para todos os problemas. Como construir um grande circo e vender todos os ingressos, botar dois bonequinhos para brigar e incendiar a plateia. O produto ideal nem parece um produto, veja como convencer de que ele é necessário. Já venceu a farsa. É só seguir o script em tom espontâneo e verdadeiro, caprichar nessa interpretação de gente como a gente, usar umas palavras-chave, o discurso das massas como se jorrasse do pensamento de um só homem. Mas tem que ser um homem. Homem branco e velho, e tem que usar um terno. Como dar ao público a ilusão perfeita, a que jamais será descoberta, fazê-lo acreditar que estará decidindo o que já está decidido, celebrar um grande avanço enquanto se garante que tudo siga igual a ontem. Venceu o marketing. Uma estrutura hipnótica, a que preserva escravos. Perdemos nós. Venceram heroísmos fabricados, e a salvação pode afinal morrer não sendo mais que retórica.


 

sábado, 15 de outubro de 2022



CAPA
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
DESCRIÇÃO DO ESPAÇO CÊNICO
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Cenas anteriores:
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(Novas cenas em breve.)
CENA 7

(Mudança brusca de luz.)

L: Parou! Acabou, eu não vou fazer parte disso! O que é isso, é uma novelinha espírita? É pra eu perdoar a minha mulher adúltera e o amante dela? Aliás, no espiritismo, isso que você está fazendo não é obsessão? Patéticos, vocês dois. Você queria o quê? Hem? Não, me diz, eu vou te dar a chance de mostrar o brilhantismo dessa tua cabeça cheia de merda. Você me trouxe aqui pra ver você se reencontrando com a minha mulher e o quê, daí, vivendo feliz pra sempre com ela, que nem o Gasparzinho? Falando em milagre?! Agora você quer o quê, ser canonizada? A padroeira das putas adúlteras? Você pode? Já não tem alguém ocupando esse posto? Tenho certeza de que candidata é que não falta…

HELENA: Existe um mundo… quase não é outro mundo, é meio que um avesso deste. Existe um mundo por trás deste mundo que é onde as coisas deste mundo são tecidas. Não, espera, eu preciso. Você tem que saber. É agora, é quando as coisas são decididas, é onde começa o movimento. Eu sempre procurei saber, eu queria entender até onde eu podia realmente decidir e controlar quem eu era, e até onde era só um resultado, um produto, a marionete do instinto ou de um padrão social. Você não sabe. Você está vendo um quadro muito pequeno aqui, é uma escolha, eu não sei do que você está se protegendo, mas essas máscaras, esses personagens todos… Estereótipos de homens e mulheres, de como um homem deve ser, ou um casal, ou o que significa uma mulher se sentir livre o bastante pra decidir com quem ela quer viver, o que ela quer fazer da vida… É essa a sua peça, é por isso que você está esperneando tanto, uma cena em que não aparece nada de um ser humano, só rótulos?

(Em algum momento ao longo das falas seguintes, Helena se transforma em Ludo.)

DIOGO: Eu entendi, Karina. Eu me apaixonei por essa mulher tanto quanto você. Até mais, se você pensar que o Ludo… mas eu entendi. Mais, eu nem sei explicar. É como se eu pudesse ser o próximo a sair flutuando, eu sinto como se eu pudesse voar.

PÂMELA: Eu não espero que você me perdoe. Eu tive que me perdoar por tanta coisa.

DIOGO: Eu me libertei de tanta coisa. E foi uma coisa que você me falou que me fez ver.

PÂMELA: Isso é o que é. Não tem um porquê, você não pergunta o porquê de uma rosa.

DIOGO: Eu queria resolver tudo. Os teus problemas, os meus, os de todo mundo aqui.

PÂMELA: Eu só existo enquanto vocês estão todos juntos.

DIOGO: Achar uma solução que favorecesse todo mundo.

PÂMELA: Se eu pudesse escolher, também seria diferente. Eu nunca quis machucar você.

DIOGO: Eu nunca me importei de ter que me machucar por isso.

PÂMELA: Isso não tinha nada a ver com você, nunca foi sobre atingir você ou fazer qualquer coisa pra te machucar.

DIOGO: E sempre acabei me machucando por isso.

PÂMELA: Não, não fale agora, eu preciso terminar.

DIOGO: Mas isso pode acabar, hoje, aqui. Isso pode dar certo, Karina.

PÂMELA: Isso não vai dar certo. Eu não vim aqui pensando que ia dar certo. Muitas coisas vão acabar, hoje, aqui, e outras que já tinham acabado muito antes não vão voltar a ser. Mas também alguma coisa está nascendo, não pra você, você só enxerga a morte. E então você não vai voltar a me ver, e não por isso, mas você também não vai voltar a enxergar nenhuma luz. Eu não posso lamentar por você, eu não espero que você compreenda a imensa dor que eu sinto.

LUDO: Eu não espero que você compreenda a imensa dor que eu sinto.

PÂMELA: A vida… foi esse sopro.

LUDO: Eu sempre soube que você era incapaz de sentir qualquer coisa por mim.

PÂMELA: E eu passei muito tempo tentando ser pessoas que eu não era.

LUDO: Que você só era capaz de amar metade de mim, e que isso não seria suficiente.

PÂMELA: Tentando viver do sentido que outras pessoas davam pra vida, porque o sentido que eu dava era...

LUDO: Eu queria poder ser só a parte que você gosta.

PÂMELA: Nunca era bom o bastante. Ou não era nenhum.

LUDO: E é engraçado, mas hoje, por causa de você, do Diogo, por causa disso tudo, hoje eu me sinto mais inteiro do que nunca.

PÂMELA: Agora tem uma coisa que ninguém nunca vai poder tirar de mim.

LUDO: E você me fez ver, viver, sentir coisas que nunca ninguém tinha trazido pra mim.

PÂMELA: O brilho do meu último instante. Um voo. O meu coração transbordando.

LUDO: É como se só agora eu nascesse. É incrível como isso pode ser só um clichê pra quem ouve e, pra quem vive, parecer a mais complexa, imprevisível e profunda realidade. É como se eu visse pela primeira vez. Não existe nada mais no mundo que eu queira tanto ver. O meu amor por você, pelo Diogo, isso me transformou de um jeito que eu achava que já não fosse possível. Eu não quero, é uma crueldade que isso acabe agora. E eu sei que eu vou passar o resto da vida me perguntando como seria se agora você olhasse pra mim e dissesse que vai me dar uma chance.

KARINA: Não existe a menor chance disso acontecer. Eu odeio um pouco isso. Quer dizer, odeio que não exista a menor chance, mas… Eu me enganei, isso é horrível. Talvez eu passe o resto da vida me torturando por isso. Eu não posso colocar um outro coração no lugar do meu pra não despedaçar o teu, o da Helena, o do Diogo. E aí não tem como não despedaçar o meu junto. Eu estou cansada de ser uma cretina e ter o coração despedaçado. De não ser uma cretina e ter o coração despedaçado. Eu estou cansada, basicamente, de ter o coração despedaçado, mas eu também não quero ser uma cretina ou ver pessoas que eu gosto sofrendo por causa de caras como esse aí que já superaram todos os graus mais elevados da completa cretinice. Então eu penso em ficar. Não, eu sinto que quero ficar, eu não penso. Quando eu penso, eu sei que esse cara nunca vai aceitar uma situação como esta. Eu ficaria aqui, sim, eu ficaria. Não com você, mas aqui. Eu quero ficar. E o meu coração transborda e dói.

MANO: E o meu coração transborda e dói.

PÂMELA: E o meu.

DIOGO: O meu, também.

(Ludo levanta a mão. Em algum momento ao longo das falas seguintes, discretamente, ele desaparece.)

L: Vocês são ridículos.

MANO: Sempre achei que fazer ciência é o mesmo que fazer poesia. Com números, sim, bastante, mas com palavras mesmo, o conhecimento, a maior parte dele, não, todo ele, é só um arranjo de palavras, é igual poesia. Pra explicar a verdade, mas poesia. Ah, eu também entendo que a poesia é pra explicar a verdade, então… Verdade, eu vejo você viva, exatamente como naquele dia, e logo você vai ser mais uma vez arrancada de mim por causa da poesia que um idiota escolheu pra explicar uma verdade que é só a verdade, esta, a de que você está aqui e de que nós nos amamos. E aí você não vai ficar. (Pausa breve.) Você só veio se despedir? Eu teria ido até o inferno. Eu vou até o inferno pra me despedir de novo, eu nunca mais quero sair de perto de você. Poesia, verdade. Você veio pra me fazer lembrar de que eu ainda estou vivo? Eu nem precisava estar. (Pausa.) Eu nem reparei que eu estava. E aí eu acabei ferindo alguém enquanto trazia você de volta. Foi uma distração, é horrível, a gente devia ser incapaz de se distrair das pessoas que a gente ama. Eu falei demais. Eu deixei passar uns detalhes, não consegui enxergar fora do meu contexto. Eu achei… pensei que o milagre fosse uma coisa pessoal, porque era, mas… Você veio me mostrar o tanto de milagres que tem no mundo?

L: Milagres?

MANO: Você não veio por nenhum motivo.

L: Como assim, de que milagres você está falando?

MANO: Você só está aqui.

L: Eu estou vendo um milagre só, bem pessoal, inclusive.

MANO: E eu só te amo, Pâmela, a verdade é essa.

L: Tem mais algum milagre acontecendo que eu não saiba?

MANO: Já é poesia demais acontecendo.

L: De que outro milagre você está falando?

(Foco sobre Helena, no mesmo local em que apareceu Pâmela no final da última cena. Quando ela fala, Ludo fala o mesmo que ela, ao mesmo tempo, mas de algum lugar invisível ao público.)

HELENA: De mim, é claro.

(Música. Helena caminha até o microfone como se estivesse sendo transmitida "ao vivo" em todos os telões, mas o que eles mostram é Ludo caminhando até o microfone. As luzes piscam de maneira dramática. Foco sobre Helena quando ela para diante do microfone. Mais uma vez, Ludo diz as mesmas palavras ao mesmo tempo, mas apenas transmitido nos telões.)

HELENA, ao microfone: Quantas vezes eu vou ter que te lembrar?