sexta-feira, 25 de maio de 2018

Eu bem que pedi pra ele: não faça a tua poesia triste hoje não. No outro quarto tem uma menina enrolada num cobertor, pensando na morte. Faça uma daquelas profecias sobre quando o amor vencer, ou música alegre, ou reze, mas pelo amor de Deus, não faça a tua poesia triste hoje não. Amanheceu chovendo, fez frio, tem coração demais que já perdeu a fé, tem fé errada demais justificando maldade, faça um bolo de frutas, uma escultura de barro, berre, assista a um filme bobo qualquer. Mas por favor, por favor, não faça a tua poesia triste hoje não.


Porque são três da madrugada estou pensando em dormir e tenho tantas coisas pra pensar vou colocar umas vírgulas aqui pra facilitar mas não tem nada disso no meu pensamento é mais uma linha reta através de universos paralelos que às vezes muda totalmente a direção ou para de repente por exemplo acho que esse para não podia ter perdido o acento na última reforma ortográfica, pára, tá vendo, bem mais fácil de entender, ou antes eu tava escrevendo assim vou por umas vírgulas aqui mas aí achei melhor escrever vou colocar umas vírgulas porque sem acento em pôr também ia ficar difícil de entender tipo eu vou por umas vírgulas pode ser lido como eu to indo através das vírgulas entende, é tudo tão difícil de entender, mas eu que nunca pensei como deveria eu acho, sempre tive a própria cabeça e isso custa a própria cabeça às vezes, sei que eu preciso mudar alguns comportamentos mas não tô muito ansiosa pra fazer concessões a coisas que eu desprezo no mundo dito civilizado, é tanto despropósito sei lá, queria no mínimo guardar umas rezas pra quando isso acontecer porque meu coração aperta e vai ficando tão pequenininho toda vez que eu penso nisso e me pergunto será mesmo deus do céu não pode ser não é possível é isso mesmo que inventaram que precisa ser e todo mundo acha tão lindo né só pode, ou por que que só não junta todo mundo e fala pára porra a gente não vai mais ser desse jeito e ponto final é a gente que decide ou não é caramba, sem essa de que as coisas são assim qual é mas que burrice, só que não, nada acontece e eu tenho que engolir que sou eu que tô errada mesmo e ninguém liga quando a dor é dos outros, uma novela interminável daquelas que sou eu quem chora entende, e só porque eu não quero mais ser obrigada, nem fingir que não sangro, não quero mais fingir que não morro ou que não vivo e não quero mais ter fingir coisa nenhuma saco. E aí quem é que dorme, com esse buzinaço na cabeça da gente. Ou no silêncio denso de um cortejo infinito, lá na frente o meu máximo potencial humano assassinado muito bem vestido em um caixão e as ruas tomadas por miseráveis recortes de mim, eus alternativos andando devagar desolados desiludidos desamparados com velinhas bobas pingando cera em suas mãos. Ah, estou perdida de novo, aí fico olhando as luzes dos carros brancas escorrendo no meu teto branco escorrendo devagar em branco às vezes rápido escorrendo eu pensando só num dia que não vem que não virá que eu não verei que desperdício de estar indo eu penso então por que estar indo hem por nada. Nem dá pra ser brutal só com os brutos não que ideia boba ultrapassada, a brutalidade há muito tempo que ela é pré-requisito, brutalidade é o novo preto, brutalidade é amor brutalidade é nóis a gente assistindo nem se importa mais se é só outro filme horrível passando à tarde ou um programa policial ou um desconhecido de olhos injetados esmurrando a porta. Por entre os dedos cobertos de sangue você vê o corpo no chão da tua sala e descobre ainda sem culpa que o inimigo não era aquele, ops você diz, mas tudo bem muda o canal e relaxa pensando que os gritos de guerra soam tão bonitos até mesmo se você não tem um cinco ponto um surround system, mas você precisa tanto ter um cinco ponto um surround system é essa a tua necessidade mais vital nesse ridículo da nossa era, todo um cinismo reinante e já despreocupado em se dissimular sendo aplaudido eleito retuitado um eco percorrendo as ruas da cidade em só mais uma só mais outra só mais esta madrugada iluminada e barulhenta e oca e sem alívio, quem é que dorme com essas cortinas balançando a brisa em minhas mãos cruzadas sobre o coração exausto eu penso que os poetas são tão bons em convocar à luta, poetas são tão bons em traduzir motivos pra luta e eu não quero nem saber sim bem que eu queria mas não sei se eu quero que me contem onde estão banidos e ridicularizados os que um dia já souberam só fazer dormir talvez sonhar segura e quieta uma criança da minha idade.

sábado, 19 de maio de 2018


Não seria importante.
Sábado.
Os ruídos eram poucos e chovia,
estava começando o outono,
esfriou um pouco desde ontem e chovia à tarde. No asfalto, escorrendo pelos prédios e escorregadores dos parquinhos uma chuva cinza de concreto fria e sem vontade, não seria nada. Um
figurante
de uma cena que ficou de fora na hora da edição,
não acrescentava nada,
nem se debruçaram à janela pra vê-lo acenando, adeus,
talvez ninguém mais saísse de casa e as lojas estivessem fechadas e os cachorros escondidos e dormissem nos sofás com as televisões desligadas.
Passaria.
Seria esquecido.
Voltaria a acontecer e não seria lembrado.
Uma cidade sem fim de calçadas e grafites, árvores úmidas e um dois três quatro milhões de pares de mãos enluvadas ou nos bolsos, uma espera inútil de quando já não falte nada,
uma espera esquecida de si,
quase-mudez,
friozinho.


sábado, 12 de maio de 2018

Da história que vamos contar juntos, quem vai se lembrar das flores de ouvido, de que ela estava me convencendo a adotar um filhotinho de tigre, de um passeio de carro em que a sombra de um pássaro escorria pelo asfalto bem à nossa frente, de quando levantamos um castelo de água, de quando choveu e a gente estava em um barco sem teto mas ela não se molhou porque tinha uma capa de chuva enquanto eu passava frio sem saber que a água do mar estava quente, de quando faltou luz e estávamos no alto da roda gigante, de como o céu estava escuro por causa das nuvens, daquele pedacinho de céu sem nuvens e lá, bem no meio dele, exatamente, as Três Marias, da tempestade que caiu na estrada, de quando atravessei a estrada no escuro enxergando só com a luz da vela que ela me emprestou, de quando atravessamos a estrada debaixo do sol desesperado do meio-dia e quando chegamos em casa tiramos toda a roupa e dormimos até o meio da tarde, na história que vamos contar juntos estaremos abraçados e confortáveis na mesma espreguiçadeira, sorrindo e falando tudo muito devagar, como pra descansar quem escuta, e por gostar da paisagem.


Vai ter amor, sim.

Vai ter amanhã, vai ter paz, sim, na tevê e fora dela, na favela, na floresta, no beco, à beira d'água. Vai ter paz e vai ter amor, e vai ter alguém estendendo a mão pra ajudar quando for preciso, sim, vai ter irmão, e também vai ter convite pra festa. Sorriso e abraço, música, brindes, um barulhinho bom até tarde. Vai ter alegria, sim. Risada. Pele. Gosto.

Vai ter amor, sim.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

mas com que esperança, ou com o quê?
(pra onde estou indo?, perguntei
e quando levantei os olhos vi:
teu olhar repousando em mim)


o desejo, afinal,
(sussurrei pra ninguém no escuro daquela noite)
o desejo, afinal, é só uma das muitas faces do amor
– e eu te vejo se espalhando em todos os espelhos

devagar
e viva
de uma semente recém posta sob a terra
espreguiçando em direção à superfície a sua metamorfose milagrosa

de uma serenidade atenta
de uma avidez atenta
lentamente
reconhecendo

ao redor do meu discurso anárquico
no coração da minha dispersão cansada
teu rosto, aquele
ponto

exato
(no vasto horizonte)
em direção ao qual, sem notar
tenho sido