domingo, 18 de dezembro de 2016

No final do meu segundo ano em Brasília, já tinha entendido muito bem por que a cidade tem uma das maiores taxas de suicídio do país. Verdade que eu era muito jovem pra enfrentar aquela aura absurda de poder e arrogância, um misto de raiva e indiferença dando o tom de um espetáculo do qual eu não sabia nem queria fazer parte, mas mesmo agora, depois de tanto tempo, duvido que eu tivesse disposição pra me colocar outra vez no meio daquele circo. As distâncias, pra resumo da história, eram o que me fazia tomar a decisão que estava tomando agora de partir: distâncias entre as almas, bem menos arborizadas que os grandes espaços vazios que surgiam, às vezes, entre uma quadra e outra da cidade, dando a súbita impressão de que ela desaparecera e estávamos sozinhos e perdidos no meio do deserto do cerrado. De qualquer forma, a cidade não era outra coisa senão ela mesma algo perdido e solitário no deserto do cerrado.

Pensava nisso enquanto atravessava o Parque da Cidade pra encontrar o João em um dos nossos bares habituais. Arrastava os pés de cansaço e desilusão, e meu humor definitivamente não era dos melhores. Olhava com ironia pros casais gays que me encaravam enquanto eu passava – um casal de meninas aqui, dois casais de meninos mais adiante – mas o problema nem era com eles, exatamente: é só que, no estado de espírito em que eu estava, enxergava naquilo um discurso bobinho e adolescente de “a sociedade precisa evoluir” meio que fazendo um contraste com o lixo espalhado pelo parque, deixando claro que eles também eram parte da tal sociedade que ainda não tinha entendido os princípios básicos de civilidade.

O mau-humor passou assim que avistei o João em uma das mesas do bar, mas foi imediatamente substituído por uma melancolia carregada e sem tamanho, vinda do fato de que eu estava prestes a dizer ao meu melhor amigo que ia embora da cidade. Ele percebeu que eu não estava bem logo que nos cumprimentamos, mas quando me perguntou o que eu tinha, apenas balancei a cabeça pra indicar que não queria falar sobre aquilo e comecei a contar uma história pra nos distrair:

– Acordei numa sala egípcia. – João fez uma careta de interrogação e eu continuei: – Tinha uns desenhos de faraós e deuses egípcios nas paredes. Eu estava numa poltrona azul muito confortável, os braços de madeira entalhados também com motivos egípcios. Cortinas transparentes e tapetes, uma música de relaxamento e uma maquininha na parede programada pra borrifar perfume a cada cinco minutos, mais ou menos. Fiquei um bom tempo lá tentando entender o que diabos era aquilo e como eu tinha ido parar ali. E a verdade é que não tenho a menor ideia. Minha consciência apagou em algum momento entre as três e as cinco da madrugada.

– Mas que lugar é esse? – quis saber João.

– É um templo ali junto ao Campo da Esperança, já viu? Alguma coisa da Boa Vontade.

Legião – ele explicou. – Legião da Boa Vontade. Nunca entrei, mas já passei pela frente algumas vezes. Já reparou nos anúncios de cartomantes e videntes que estão nos muros dali? – Fiz que não com a cabeça. – Tem um que diz: “Trago a pessoa amada de volta em até três dias”. Não é um anúncio encantador pra se colocar à porta de um cemitério? – Sorri, ainda um pouco melancólico, e dessa vez João não deixou por menos: – Vá, fale logo o que está te incomodando.

Respirei fundo.

– Eu vou embora.

João se calou por alguns segundos, processando aquilo sei lá de quantas maneiras diferentes, até que recomeçou, com a voz animada de sempre:

– Você vai ter que me prometer que, antes de ir embora, a gente vai tirar umas fotos lá na frente do STF com um cartaz que diz: “Supremo sou eu, bitches”.

Aí eu ri tanto que a melancolia toda desapareceu.

Um comentário:

Anônimo disse...

Descreveu Brasília com perfeição. Só faltou umas boas pitadas de corrupçao