sábado, 25 de março de 2017



estamos no limite da delicadeza. e não porque algo de cruel ou de brutal espreite além do próximo passo – um passo a mais, daqui, seria adentrar um território sobre-humano de ternura e entrega. essas palavras que tantos aprisionam a uma ideia de “universo feminino”, ou pior, que são só “coisas de mulheres”, mas que eu homem reconheço e gosto, entre nós dois sutis e óbvias a um só tempo feito fonte e foz se realizam a despeito de todos os avisos de CUIDADO
ou talvez porque
numa espécie de transe
ao ler esses avisos nós tenhamos simplesmente dito sim,
eu cuidarei de você,
e será o mesmo que cuidar de mim.

sábado, 11 de março de 2017



Era o meu último dia na biblioteca da escola e eu ainda não tinha decidido se ia sentir mais saudades dos alunos do quinto ano ou do Manoel de Barros. Dizem que as despedidas são mais fáceis pra quem vai embora do que pra quem fica, mas não sei que tipo de régua pode ser usada pra medir essas coisas. Imagens gravadas a fogo na memória: uma gaiola cheia de livros que o professor de Literatura pendurou à janela e que serviu como tema pra um concurso de redação; o primeiro beijo de um casal do oitavo ano; a menininha que um dia se aproximou muito séria e, mesmo não havendo mais ninguém na biblioteca, perguntou de voz baixa: O que é poesia? Mas por que você não faz uma pergunta mais fácil como “Quem somos?”, “De onde viemos?” ou “Pra onde vamos?” Estava indo embora outra vez sem nunca ter lido Sagarana, sem nenhum outro emprego em vista e só com a vontade de algo novo, fosse o que fosse. Passei os dedos pelos livros de uma prateleira, melancólico, um momento raro de silêncio onde o silêncio é sempre exigido – mas onde a juventude é sempre mais forte. E por que mais nunca ninguém levou emprestado aquele O Lobo da Estepe? “Você é muito criativo e toma boas iniciativas”, disse o diretor da escola quando apresentei o meu pedido de demissão, “mas já deve saber que é péssimo em cumprir ordens”. Sim, eu já sabia – mas bem mais sonhador do que orgulhoso. Sobre um balcão ao lado da porta, antes de sair da biblioteca pela última vez, fiz girar um globo terrestre e me lembrei de uma brincadeira pra se descobrir em que lugar do mundo a gente vai morar. E me detive ali por mais alguns minutos, sentindo um princípio de vertigem. Aquele cheiro, a luz do sol passando em todas as janelas ao longo do dia, uma a uma, a algazarra das crianças no pátio durante o intervalo: muitas coisas pra sentir saudades. De olhos fechados, fiz girar o globo uma vez mais e depois o fiz parar com a ponta do indicador. Se é verdade que a vida passa como um filme quando a gente morre, talvez eu vá me divertir, ao menos, com a diversidade das minhas cenas. Abri os olhos. Eu vou morar no meio do Oceano Atlântico.

quinta-feira, 2 de março de 2017



Mais por excesso que por falha / é um ciclone constante aqui dentro
Arrastando milênios de filosofia e matemática
Mais por paixão que por vontade explodem versos filmes quadros
Preguiça inesgotável de antever o que dirão os sábios
E os críticos mais rasos
Se alguém me engravidasse ao menos
Se eu conseguisse não achar tão vulgar a realeza
Espero nunca mais ter que nascer burguês
Quero vomitar os homens sempre que escuto “isso é coisa de veado”
Mulheres também
Mais amor-próprio que ego
Meus pensamentos são relâmpagos / não tem palavra onde caiba
Não chega a tempo
Não permanece o bastante
Digo o contrário ou nada a ver ou volto a assuntos encerrados
Mais
Por descanso
Que por descaso
Estou sempre no meu próprio mundo
Mas só me adoro quando chove no sábado
Ou quando acordo e sou Deus