sexta-feira, 23 de junho de 2017

Estou à janela conversando com meu Anjo.

– Não sei, – eu digo – tenho a impressão de que alguma coisa está errada.

– Não há nada – ele diz.

Pouca gente pelas ruas, uma noite preguiçosa e agradável. Você gostou da minha blusa nova? Estou alegre, isso é tão raro. Nada de errado? Nada?

– Então é isso – eu resmungo.

O Anjo dá risada. Amanhã posso acordar tarde, não tenho o que fazer e seria capaz de passar horas falando sobre coisas boas – não estou acostumado. Devia me preocupar em achar um trabalho condizente com a minha experiência, pra não dizer “com a minha idade”. Porque isso da idade não tem nada a ver, nem foi uma coisa que escolhi, como se hoje eu tivesse acordado entediado e pensado “O que eu vou fazer hoje? Já sei: vou ter quase quarenta anos”. E afinal o que é ter quase quarenta anos? Um número carregado de palavras e códigos de conduta (!?), invenções não sei de quem seguidas de acordo com os interesses de quem as segue. Interesses que não estou bem certo de que eu tenha.

– Estou pensando em aceitar aquele emprego no escritório do seu Lauro. O trabalho é simples e vou ter bastante tempo livre. Não vou ganhar mais do que estou ganhando agora, mas também não vou ganhar muito menos. Quer dizer, acho que na questão “custo-benefício”, eu saio ganhando. O que você acha? – O Anjo arqueia as sobrancelhas, “vai fundo, o que importa?”. Observo as montanhas, nuvens noturnas, o cheiro de uma primavera que já está chegando. – E acho que eu devia pedir a Larissa em casamento. Meu amor é suficiente. Sei lá, verdade que ela consegue ser bem estúpida, às vezes, mas eu também tenho os meus dias. Todo mundo tem seus dias. Acho que fui meio arrogante conversando com ela hoje, você não acha?

– Era o teu tempo – limita-se a dizer o Anjo. Por que toda essa paz excessiva? A brisa suave, um riso distante de criança. Você gostou mesmo do meu novo corte de cabelo? Um gole d’água, um suspiro, o sono começando a dar sinal. O Anjo se debruça à janela pra cuspir na calçada.

– Porco – eu digo.

E se tudo der errado, e se eu morrer de tédio no caminho que escolhi? E se eu morrer ignorado, esquecido por todos, sem um tostão furado no bolso – posso culpar meu Anjo, esse anjo torto que acaba de cuspir na calçada?

– Acho que vou meditar um pouco...

– Achei que você já estivesse fazendo isso.

– Estou?

Não consigo esconder uma pontada de irritação. E a fome no mundo, e a guerra eterna dos eternos oprimidos, e todo esse lixo do capitalismo inventando necessidades que não temos, e a violência, e a maldade, e, e...

– Acho que estou enlouquecendo...

Sem sair do lugar, o Anjo dá uma cambalhota. É uma manobra dos anjos que nem mesmo os anjos sabem explicar, mas que costuma divertir bastante as crianças.

– Nada de errado, nada?! E o que eu faço agora?

O Anjo me olha com uma cara de “quando é que você vai aprender isso?” e fala muito sério:

Saboreia.

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