Alguém me disse que San Pedro de Atacama tem “a maior concentração de bichos-grilos por metro quadrado do planeta”.
Já estive aqui antes, nesta mesma lanchonete com mesinhas na calçada tomando o mesmo café com chantilly e sorvete de baunilha. Que fica bem melhor depois que o sorvete derrete, diga-se. Tive sonhos confusos à noite, sonhos pesados, sérios, agora há uma porção de casaizinhos correndo de mãos dadas pela praça e bebês e cachorros e um céu exageradamente limpo. Bem ao longe, uma dorzinha de cabeça, e olha que eu nem bebi tanto assim ontem à noite, pelo menos não tanto quanto os outros do albergue. Aconteceu que um povo me chamou pra jogar baralho antes de dormir, um jogo legal que eu não conhecia e que aprendi bem rápido, mas em que não me dei muito bem. Tínhamos que conversar em inglês e achei isso difícil, agora já não lembro mais nada das regras do jogo nem como se fala valete de espadas. Era uma gente vinda de vários lugares, Austrália, Irlanda, sei lá mais o que, então tinha uma mistura interessante de sotaques. E a trilha sonora também estava ótima, tocou várias músicas do Pink Floyd e cantamos juntos uma porção de outras coisas como Father and Son e Blowin’ in the Wind. Depois dei um bom tempo sozinho perto da fogueira, aí fui dormir tarde e confortavelmente bêbado.
Queria ficar sem fumar hoje, mas não me animei a enfrentar isso no meio de uma ressaca, mesmo que uma ressaca leve, então a primeira coisa que fiz quando saí pela manhã foi achar um lugar onde comprar cigarros. Um maço de cigarros aqui custa bem mais do que no resto do Chile, e quando o cara me falou o preço, fiz uma careta e perguntei “Por que tão caro?”. Foi bem mais pela surpresa do que reclamando, só que ele não entendeu assim, fechou a cara e disse “É este o preço. Se você não quiser, não compre”. Sempre levo um tempo pra perceber quando alguém está sendo grosseiro comigo, e neste caso, quando percebi, só lhe dei as costas e saí sem dizer mais nada. Sinto muito. Sem paciência pros homens e suas maravilhosas máquinas registradoras e todos os seus eternos passatempos bélicos. Acabei pagando o mesmo preço em outra venda, claro, mas dessa vez rolou até uma troca de sorrisos e obrigados. Tão simples, minha gente. Saí de lá e vim direto pra esta lanchonete, beber o café gelado que eu me lembrava de ter gostado da outra vez em que estive aqui. Tranquilamente. Pelo menos enquanto a minha mesa ainda estiver na sombra.
Agora tive que fazer uma pausa nas anotações porque passou por mim um casal de cinquentões brasileiros que eu conheci no albergue e que vão começar hoje mesmo sua viagem de volta. Os dois são professores universitários em Ubatuba – ela, de História; ele, não lembro. Anotaram o e-mail deles num guardanapo. “Pra quando você for a Ubatuba”, disseram, e me prometeram que eu poderia ficar na casa deles e que até me emprestariam uma das pranchas de surfe que eles têm em casa. “Vocês surfam?”, perguntei, animado, como se fosse a coisa mais natural do mundo, mas eles reviraram os olhos como se eu tivesse feito uma pergunta estúpida. Tudo bem. Acho muito difícil que eu vá a Ubatuba e não sou o maior fã de surfe, mas vá lá, guardei o e-mail com carinho e voltei a estas anotações já bem mais feliz do que quando comecei.
Depois passou um menininho de uns cinco anos falando sozinho. “Setecentos mil”, ele dizia, parecendo impressionado. Quando viu que eu estava olhando, balancei a cabeça e disse “Não. É muito”, mas nem sabia do que ele estava falando, falei só de brincadeira. Ele abaixou a cabeça e passou por mim em silêncio, aí um pouco mais adiante parou, virou pra mim e estendeu a mão cheia de moedas. “E quanto eu tenho?”, perguntou.
Contei setecentos.
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