sábado, 27 de janeiro de 2018

Espalho sobre o tapete as chances perdidas, tudo na vida depende de como soa ou como bate a luz, uma garrafa de tequila, uma escultura de barro que significava tanto e acabou quebrando, as provas que eu não tive de que ela me amou, crimes na tevê, cortinas que balançam. Espalho pelo chão da sala os restos do que fui e esboços do que sou, do amanhã não quero nada, ainda que tudo, cadernos de receitas e livros didáticos, poeira, jogos e cartões postais, o coração pequenininho de amar tanto e não ser visto, sob uma lâmpada queimada, descalço. Espalho pela casa as lembranças do estrago e de passar ao largo ou assistir calado, o sangue que eu perdi e a espera de um perdão que nunca veio, alguma dor antiga repisada e ressentida, os cacos de um copo quebrado, os fios de luz, a insônia, espalho pelo prédio as lágrimas contidas por tempo demais e por razão nenhuma, só porque tristes demais, pesadas demais, lágrimas demais, panfletos de toda fé e cartazes do filme que verei sozinho em minha casa, hoje, a partir das onze, flores secas nas escadas, só um jornal de ontem no balcão da portaria, e quando chego à rua até posso jurar que já não há mais nada pra fazer ou lamentar, nem sei, a cidade me engole à primeira vista, acho até que nunca amei e acho até que poderia amar de novo, a pé, por todos os vazios e possibilidades ir a ser, e me espalhar enfim, sem fim, recomeçado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sempre é possivel recomeçar!