Espalho sobre o tapete as chances perdidas, tudo na
vida depende de como soa ou como bate a luz, uma garrafa de tequila, uma
escultura de barro que significava tanto e acabou quebrando, as provas que eu
não tive de que ela me amou, crimes na tevê, cortinas que balançam. Espalho
pelo chão da sala os restos do que fui e esboços do que sou, do amanhã não
quero nada, ainda que tudo, cadernos de receitas e livros didáticos, poeira,
jogos e cartões postais, o coração pequenininho de amar tanto e não ser visto,
sob uma lâmpada queimada, descalço. Espalho pela casa as lembranças do estrago
e de passar ao largo ou assistir calado, o sangue que eu perdi e a
espera de um perdão que nunca veio, alguma dor antiga repisada e ressentida, os
cacos de um copo quebrado, os fios de luz, a insônia, espalho pelo prédio as
lágrimas contidas por tempo demais e por razão nenhuma, só porque tristes
demais, pesadas demais, lágrimas demais, panfletos de toda fé e cartazes do
filme que verei sozinho em minha casa, hoje, a partir das onze, flores secas
nas escadas, só um jornal de ontem no balcão da portaria, e quando chego à rua
até posso jurar que já não há mais nada pra fazer ou lamentar, nem sei, a cidade me engole à
primeira vista, acho até que nunca amei e acho até que poderia amar de novo, a
pé, por todos os vazios e possibilidades ir a ser, e me espalhar enfim, sem
fim, recomeçado.
Um comentário:
Sempre é possivel recomeçar!
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