Eu costumava sorrir durante o voo. Fechava os olhos,
uma vez me deixei cair até quase o chão, vertigem, vício de vento no rosto. Eu
costumava sorrir no alto da torre. Eu costumava sorrir quando percebia o barco
se soltar do cais, o rum enchendo os porões, o vasto horizonte aberto e uma
liberdade a velas. Não sorria muito quando voltava da caçada sem nada além de
botas sujas, mas apesar da barriga doendo, eu tinha que limpar o piso todo de
novo. Não sorria entre as bombas, nem entrincheirado, não sorria acusado de
crimes que eu já tinha visto os meus acusadores todos cometer com indiferença.
Sonhava em lençóis de seda ou quando dormia no estábulo, sozinho ou embalado
pelo som do coração de Guadalupe, olhando estrelas eu sonhava, era feliz,
jamais desacreditei da felicidade. Andei esquecido dela em campos devastados,
garimpos e sertões em que acordei tantas noites com a boca seca e coberto de
suor, num susto e com medo de lembrar por quê. Mas costumava sorrir sempre que me
lembrava de ter sido criança ou via as crianças sonharem ou sonhava que a Via
Láctea era uma estrada de luz que eu percorria com um cavalo alado, e frutas
frescas me bastavam, eu costumava sorrir acompanhado, nada no mundo me fazia
mais feliz do que sorrir acompanhado. Das sensações de traição e de abandono,
tive a parte que me coube, uma porção amarga de escuridão da noite mais escura.
Sobrevivi pra contar, não pra acertar as contas. Teve um tempo em que ninguém
mais vinha me chamar pra um passeio na praia ou trazer doces nem nada, a tinta descascou
nas paredes e tinha folhas secas pelo chão do meu quarto, e às vezes parecia
que sonhar, nesse tempo, tinha um gosto de inútil. Mas eu costumava sonhar
mesmo assim com o gosto de inútil, sentado em silêncio à varanda de tábuas, a
cuia do mate na mão e a chaleira ao lado, um cobertor nas pernas contra o vento
sul, o céu sem desabar, as pálpebras pesadas.
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