sábado, 10 de março de 2018

Eu costumava sorrir durante o voo. Fechava os olhos, uma vez me deixei cair até quase o chão, vertigem, vício de vento no rosto. Eu costumava sorrir no alto da torre. Eu costumava sorrir quando percebia o barco se soltar do cais, o rum enchendo os porões, o vasto horizonte aberto e uma liberdade a velas. Não sorria muito quando voltava da caçada sem nada além de botas sujas, mas apesar da barriga doendo, eu tinha que limpar o piso todo de novo. Não sorria entre as bombas, nem entrincheirado, não sorria acusado de crimes que eu já tinha visto os meus acusadores todos cometer com indiferença. Sonhava em lençóis de seda ou quando dormia no estábulo, sozinho ou embalado pelo som do coração de Guadalupe, olhando estrelas eu sonhava, era feliz, jamais desacreditei da felicidade. Andei esquecido dela em campos devastados, garimpos e sertões em que acordei tantas noites com a boca seca e coberto de suor, num susto e com medo de lembrar por quê. Mas costumava sorrir sempre que me lembrava de ter sido criança ou via as crianças sonharem ou sonhava que a Via Láctea era uma estrada de luz que eu percorria com um cavalo alado, e frutas frescas me bastavam, eu costumava sorrir acompanhado, nada no mundo me fazia mais feliz do que sorrir acompanhado. Das sensações de traição e de abandono, tive a parte que me coube, uma porção amarga de escuridão da noite mais escura. Sobrevivi pra contar, não pra acertar as contas. Teve um tempo em que ninguém mais vinha me chamar pra um passeio na praia ou trazer doces nem nada, a tinta descascou nas paredes e tinha folhas secas pelo chão do meu quarto, e às vezes parecia que sonhar, nesse tempo, tinha um gosto de inútil. Mas eu costumava sonhar mesmo assim com o gosto de inútil, sentado em silêncio à varanda de tábuas, a cuia do mate na mão e a chaleira ao lado, um cobertor nas pernas contra o vento sul, o céu sem desabar, as pálpebras pesadas.

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