Aceitei
o copo de aguardente que o casal simpático me oferecia. Fui me sentar ao lado
deles no cercado de concreto de um canteiro, Alonzo e Clarita, hippies que estavam na cidade de
passagem e no momento bebiam acompanhados por Diego, morador dali mesmo de
Tilcara, norte da Argentina. O sol começava a se por e o vento ia ficando cada
vez mais gelado, enquanto se armava uma feira noturna ao nosso redor, na praça.
Tinha conhecido o Diego mais cedo a caminho da Laguna de los Patos, agora ele
me reconheceu e perguntou se eu tinha gostado do passeio, o que me fez parar
pra conversar com eles. Alonzo disse que não gostava da lagoa, que lhe parecia
só uma poça grande, mas que tinha gostado muito das Cuevas del Wayra e do sítio
arqueológico de Pucará. Eu tinha visitado Pucará também, e de fato, tinha
gostado muito. Era um povoado pré-hispânico muito bem preservado e cheio de
placas informativas com conteúdo interessante – como por exemplo algo sobre
antigos rituais em que se usava cebil, uma planta alucinógena. Foi sobre isso
que perguntei ao Diego antes de me estenderem o copo de aguardente, mas ele apenas
sorriu – e essa foi a única resposta que me deu a respeito da tal planta.
Por
outro lado, acabou falando bastante sobre os nativos da região e sua relação
com a terra, seus pontos de culto e sua cosmologia. Deu praticamente uma
palestra, apesar do álcool enrolar um pouco sua língua, às vezes, e de muitas
mudanças de assuntos e momentos de pura diversão. Clarita estava o tempo todo
fazendo interrupções sem sentido, comentários absurdos do tipo “Eu sou uma
quase-louca que ficou no meio da fonte”, e sempre que isso acontecia, Alonzo
balançava a cabeça olhando pra ela e dizia “Você está fora da órbita”, depois
dava mais um gole generoso em seu copo de aguardente. Não lembro exatamente
como a conversa chegou a questões de certo e errado, limites, culpa, só sei que
a essa altura já tínhamos começado uma segunda garrafa. Diego defendia que
todos os limites e juízos são abstrações, que só existem na cabeça da gente, e
que tudo é permitido nos desejos e na imaginação: internamente somos absolutamente
livres, nem tinha como ser diferente.
Não
lembro quanto tempo durou o assunto e se ainda estávamos nele quando um artista
ambulante tocou Let it be numa flauta
de bambu, mas a conversa se desenrolou até questões mais puramente religiosas,
acontecimentos sobrenaturais e entidades do tipo Exu, que bebem, fumam, falam
palavrão e não se constrangem de dizer que fazem tanto o bem quanto o mal. Citei
uns nomes de Exu que eu conhecia – Tranca Ruas, Caveira, etc – e expliquei mais
ou menos o que ele significava na Umbanda. Alonzo, atento à conversa, mencionou
o medo que os cristãos sentem de entidades como essa; aí o Diego, arregalando
os olhos, olhou pra ele e disse:
–
Pois se eu sou cristão, suponho que acredito em Deus. E se acredito em Deus, então
o que existe pra ter medo?
Isso encerrou a discussão, ficamos todos pensando sobre o que ele tinha
dito. Clarita dançava entre os músicos, rindo como uma louca
completa, e agora a praça estava muito cheia de cores, luzes, sons. O ar gelado fez com que eu me perguntasse se nevaria por lá, e em seguida considerei o fato de que a
região era bastante seca. A embriaguez se afastou um pouco e deu lugar a uma
sensação recorrente desde que eu tinha chegado a Tilcara: um certo assombro
pelo quanto a paisagem toda me era familiar. Deduzi que eu tivesse morado ali
em uma encarnação anterior, só podia ser isso, na hora achei que era
indiscutível. E parecia que nada no mundo fazia mais sentido que adorar um deus
do sol, um da montanha, um do vento...
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