terça-feira, 26 de fevereiro de 2019


Tantos anos passando quase diariamente por essas ruas e ainda confundo os nomes das praças aqui perto, Osório, Zacarias, Carlos Gomes, etc. Mas ainda posso dizer que sei de cor o concreto e os vidros da Biblioteca Pública e a velocidade dos carros em volta dela a essa hora da manhã. Se é que já se pode chamar isso de manhã: o sol só vai nascer daqui a uma meia hora e ainda não há o menor sinal dele. Curitiba nessa época do ano nem tem muito sol, e o mais provável é que o dia amanheça coberto de nuvens. Hoje acordei com quatro números escritos com caneta verde nas costas da mão esquerda e não tenho a menor ideia de como eles foram parar lá, e isso ocupou meus pensamentos durante toda a caminhada até aqui, que não foi pouca. A essa altura, eu já não sinto tanto o frio, passando pela praça da Catedral sem nem me perguntar como ela se chama. Do sono, nem sinal, desde que me deparei com aqueles números, ainda na cama, logo que acordei.

6294. Escritos com caneta verde nas costas da mão esquerda, sendo que sou canhoto (1) e (2) não tenho canetas verdes em casa, e sendo que (3) ontem não saí de casa depois das cinco da tarde e (4) tenho certeza de que não tinha nada na minha mão esquerda antes disso. Na verdade, os números estavam nítidos demais até pra terem sido escritos antes de eu dormir, ontem à noite. E essa é a parte mais perturbadora: a impressão que dava de que os números tinham acabado de ser escritos assim que acordei.

>Nunca entendi exatamente o que faz com que a memória escolha este ou aquele momento pra levar guardado pro resto da vida, largando outros que seriam bem mais úteis de serem lembrados. Por exemplo: pode acontecer de eu me lembrar, às vezes, e por nenhuma razão específica, de pequenos losangos de luz colorida escorrendo no vestido de uma desconhecida em um clube noturno, há muito tempo, ou de uma criança que uma vez eu vi se divertindo nos ombros do pai enquanto os dois atravessam a multidão eufórica da Rua XV, mas não sou capaz de me lembrar de um acontecimento importante que se passou ainda ontem, e que continua aqui comigo de forma até quase assustadora. Daqui até a Reitoria, pra onde estou indo, e num raio de vários quilômetros desde aqui, conheço cada traço de cada obra do Poty Lazzarotto que enfeita a cidade, mas sou incapaz de reconhecer a caligrafia dos números na minha mão esquerda, e a cada minuto que passa, a minha esperança de reconhecer e desvendar o mistério se afasta mais um pouco, assim como a escuridão da noite vai sendo engolida pela luz, só que ao contrário.

6294. Já posso ver ali em frente a praça que fica entre o Teatro Guaíra e o prédio de Direito da UFPR. Conforme o previsto, o céu começa a clarear mostrando uma densa camada de nuvens. Vai ficar assim o dia inteiro, o frio não vai passar e eu nunca vou me lembrar de onde vieram os números – já estou conformado. Todas as hipóteses que levantei pra explicar o caso são ridículas, e por mais que eu goste de algumas delas, especialmente as mais fantasiosas, não estou acreditando mesmo em nenhuma. Nenhum ser extraterrestre ou de outra dimensão veio me entregar uma mensagem cifrada antes que eu acordasse.

Pelo menos eu acho.

A verdade é que as explicações mais simples não parecem menos mágicas.


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Trecho de um antigo conto inacabado, chamado No inverno curitibano, tentando não acreditar em milagres.


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019



Me deixe
Descansar
Por um século ou mais
Agora que encontrei
Em mim
A tua ternura
Alheia ao rugido constante
Do mundo
Ao sempre haver falhas
Ao ego de quem
Alardeia
Conhecer a cura
Me deixe
Transbordar então
De maravilhamento
Por esse mundo de luz
Por essas almas de azul
Inesgotáveis
Agora que encontrei
A tua serenidade
Sólida
No fundo do meu coração
Que despencava
Aos pedaços
Me deixe
E se quiser
Por favor
Permaneça ao meu lado
Até
Não existirem
Mais lados

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

João Pessoa - PB

Sonho sem licença, o sol vadio do fim da tarde acaricia a cabeleira verde da floresta, as previsões não me cegam pro agora, acontece um querer limpo de nuvem através das formas e eu só adoro, há uma linha invisível que une todas as coisas vivas, laço em lonjuras secretas, num único sentido perceber a melodia, o doce e a claridade, um habitar as fontes e anteceder os nomes, frescor de fruta silvestre, lábios e orvalho, seguir é sempre adiante, a força de existir é incontornável.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019


Querida Shattiey;

Nunca fui o maior fã do twitter e tenho que concordar com nosso amigo que disse que você é insuportável, mas o pior é ter que admitir que se eu tivesse um perfil naquela rede, ele seria muito parecido com o seu.

Hoje tem coisa demais no mundo construída sobre a incompreensão, a tal "normalidade" anda doente e o que reina, absoluto, ainda é o medo de sermos inteiros, um pânico, um desespero. Porte de alma, claro, ninguém quer liberar, Deus o livre, e em vez de vida fora do mercado, lá seguem as massas sendo massas e comprando os gritos de libertação que vendem mais, parcelados no crédito. O problema da esquerda, como você diz, é que ela está muito cheia de cretinos, assim como na direita até as melhores pessoas estão muito cheias de ideias cretinas. Mas quando uma pessoa está decidida a ser uma idiota, você sabe, não adianta nada a gente ter razão.

Nessas revoluções dentro de bolhas, com luxuosos desfiles intelectuais e vícios discursivos que não aceitam sutilezas, tenho ouvido as fantasias mais delirantes sobre superioridades morais de todas as partes, como se não estivesse todo mundo tão ridiculamente sendo um bicho humano. Mas você é alguém que se cansa de ser desagradável, às vezes, aproveita que é uma personagem de ficção e tira uns dias pra não existir, simplesmente. O mundo não precisa de gente, é verdade, a raiva é superestimada e o povo romantiza demais essa porcaria de falta de romantismo – em vez de partir logo pro mundo ideal em que todas as discussões terminariam com "vá ler poesia". Ainda bem, minha querida, que você está aí nos enviando suas notícias de envelhecer sendo uma poeta adolescente, com suas saudades tão nossas de quando o resto era silêncio.

Com certeza é um mundo muito chato pra crianças, ainda mais pra crianças da nossa idade.

Estamos juntos, Shatty. Em algum lugar, de alguma maneira, o amor já ganhou faz tempo.

Escreva papoulas.