Tantos anos passando quase diariamente por essas ruas e
ainda confundo os nomes das praças aqui perto, Osório, Zacarias, Carlos Gomes,
etc. Mas ainda posso dizer que sei de cor o concreto e os vidros da Biblioteca
Pública e a velocidade dos carros em volta dela a essa hora da manhã. Se é que já
se pode chamar isso de manhã: o sol só vai nascer daqui a uma meia hora e ainda
não há o menor sinal dele. Curitiba nessa época do ano nem tem muito sol, e o
mais provável é que o dia amanheça coberto de nuvens. Hoje acordei com quatro
números escritos com caneta verde nas costas da mão esquerda e não tenho a
menor ideia de como eles foram parar lá, e isso ocupou meus pensamentos durante
toda a caminhada até aqui, que não foi pouca. A essa altura, eu já não sinto tanto
o frio, passando pela praça da Catedral sem nem me perguntar como ela se chama.
Do sono, nem sinal, desde que me deparei com aqueles números, ainda na cama,
logo que acordei.
6294. Escritos com caneta verde nas costas da mão esquerda,
sendo que sou canhoto (1) e (2) não tenho canetas verdes em casa, e sendo que (3)
ontem não saí de casa depois das cinco da tarde e (4) tenho certeza de que não tinha
nada na minha mão esquerda antes disso. Na verdade, os números estavam nítidos
demais até pra terem sido escritos antes de eu dormir, ontem à noite. E essa é
a parte mais perturbadora: a impressão que dava de que os números tinham
acabado de ser escritos assim que acordei.
>Nunca entendi exatamente o que faz com que a memória
escolha este ou aquele momento pra levar guardado pro resto da vida, largando
outros que seriam bem mais úteis de serem lembrados. Por exemplo: pode
acontecer de eu me lembrar, às vezes, e por nenhuma razão específica, de pequenos
losangos de luz colorida escorrendo no vestido de uma desconhecida em um clube noturno,
há muito tempo, ou de uma criança que uma vez eu vi se divertindo nos ombros do
pai enquanto os dois atravessam a multidão eufórica da Rua XV, mas não sou
capaz de me lembrar de um acontecimento importante que se passou ainda ontem, e
que continua aqui comigo de forma até quase assustadora. Daqui até a Reitoria,
pra onde estou indo, e num raio de vários quilômetros desde aqui, conheço cada
traço de cada obra do Poty Lazzarotto que enfeita a cidade, mas sou incapaz de
reconhecer a caligrafia dos números na minha mão esquerda, e a cada minuto que
passa, a minha esperança de reconhecer e desvendar o mistério se afasta mais um
pouco, assim como a escuridão da noite vai sendo engolida pela luz, só que ao
contrário.
6294. Já posso ver ali em frente a praça que fica entre o
Teatro Guaíra e o prédio de Direito da UFPR. Conforme o previsto, o céu começa
a clarear mostrando uma densa camada de nuvens. Vai ficar assim o dia inteiro,
o frio não vai passar e eu nunca vou me lembrar de onde vieram os números – já estou conformado.
Todas as hipóteses que levantei pra explicar o caso são ridículas, e por mais
que eu goste de algumas delas, especialmente as mais fantasiosas, não estou
acreditando mesmo em nenhuma. Nenhum ser extraterrestre ou de outra dimensão
veio me entregar uma mensagem cifrada antes que eu acordasse.
Pelo menos eu acho.
A verdade é que as explicações mais simples não parecem
menos mágicas.
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Trecho
de um antigo conto inacabado, chamado No
inverno curitibano, tentando não acreditar em milagres.
Um comentário:
Quero saber o fim!!!!!
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