Fazia uns dez minutos que o telefone estava tocando e eu andava em um
corredor interminável, tentando achar a fonte do barulho incômodo, avançando
cada vez mais rápido sem nunca conseguir chegar, até que uma engrenagem se
encaixou na minha cabeça e eu finalmente me movi, não quero dizer com isso que
eu tenha acordado, mas alguma coisa engatou e eu estendi o braço e tirei o fone
do gancho e coloquei na orelha e resmunguei alô, então a voz do outro lado era
forte e meio enrolada de bebida e queria saber como era o nome daquele texto de
teatro, lembra, não-sei-o-que-lá das entranhas da noite, a voz falava sem parar
enquanto a minha consciência voltava muito devagar e entendia o que estava
acontecendo, tateando a escuridão à minha volta até descobrir no relógio que
eram três e cinquenta e oito, que a voz era de Bernardo e que aquele era um
caso de vida ou morte envolvendo uma garota, o que significava sexo ou não
sexo, você ligou às quatro da manhã pra perguntar o título de um texto de
teatro?! reclamei, mas ele estava decidido, lembra um texto meio triste, um
texto que falava de como a cidade era perigosa à noite pra quem está bêbado
lembra, as coisas que as pessoas podem fazer umas com as outras, acho que ele
acordava em uma banheira cheia de gelo derretendo você precisa lembrar essa
mulher é muito linda você não entende, meu quarto tinha cheiro de cigarro e a
luz de um poste entrava pelos furos da cortina verde musgo, fala comigo doce
como a chuva eu disse, mas Bernardo não ouviu, era um texto muito curto, falava
da solidão de um casal e de como a comunicação não consegue comunicar de
verdade ou algo assim, como é que isso pode servir pra conquistar uma garota
pensei, meu deus as coisas que as pessoas podem fazer umas com as outras, porra
Bernardo amanhã tem ensaio cedo eu disse, como era o nome do texto? ele
repetiu, eu sei que você sabe R você nunca esquece o nome de um texto aposto
que sabe até o nome do autor e eu disse é claro que eu sei o nome do autor é
Tennessee Williams e o texto se chama fala comigo doce como a chuva, fala
comigo doce como a chuva repeti, fala comigo doce como a chuva ele falou obrigado
estou te devendo mais uma e desligou, o quarto a escuridão e o cheiro de
cigarros de repente eram muito grandes como se eu estivesse vendo só agora e
não gostasse nem um pouco, eu estava sozinho sem ter como nem pra quem
comunicar o que quer que fosse, nas entranhas da noite, o sono desaparecido e
um copo de água vazio na mesa de cabeceira, nada eu pensei nada ninguém nada,
se é que nesta vida ainda pode um homem ter certezas, nada nem ninguém no mundo
aprendeu ainda a falar tão doce quanto a chuva.
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