segunda-feira, 15 de julho de 2019

Tinha cerca de sessenta anos, os cabelos grisalhos e a pele escura. Tomava um café na rodoviária quando o conheci. Não pensou duas vezes ao me ouvir dizer pra onde estava indo:

“Eu te levo lá.”

Ficava em outra cidade, mas era exatamente pra onde ele estava indo, também. No caminho, foi contando histórias da vida dele e do lugar, os nomes das montanhas de pedra, detalhes da fabricação da cachaça. Disse que tinha um filho ou dois, não lembro bem, mas contou uma história de quando um deles era criança que até hoje eu lembro em detalhes.

O menino tinha uns nove anos quando, numa noite de domingo, chegou com uma conversa tão esquisita que ele nunca mais conseguiu esquecer. Perguntou se não poderia ser que eles todos fossem só personagens de uma história que alguém estivesse contando, ou sonhando, ou que estivesse passando em uma espécie de tela de cinema em outra dimensão, quem sabe. E falou sobre uma peça de teatro que tinha visto na rua, algo sobre uma menina que tinha saído pelo mundo em busca de respostas pra perguntas daquele tipo.

A menina viveu muitas aventuras e enfrentou grandes perigos por onde passou, até que em certo momento se encontrou com o Pequenininho Triste, que se chamava assim mas tinha na verdade quase três metros de altura. Ela contou pra ele que estava em busca de respostas pra perguntas sobre a realidade e sobre quem a gente é, mas ele a aconselhou a desistir da busca. Disse que milhares de pessoas antes dela tinham procurado pelas mesmas respostas e nunca tinham encontrado nada.

“Eu mesmo”, disse o Pequenininho Triste, “quando era velho, fiz a minha procura. Foi o que me deixou triste assim”, confessou. Contou que em sua jornada tinha enfrentado mais sofrimentos do que acreditava que era possível um homem suportar. Mas disse que o mais longe que conseguiu chegar foi até o sótão de uma velha assustadora que todos na cidade diziam que era bruxa e que sabia responder com acerto qualquer pergunta que lhe fizessem. Ele foi até lá, fez todas as perguntas que queria e tudo o que ganhou foi uma xícara de um chá horrível e uma bufada de poeira na cara no instante em que ela abriu um imenso livro pra ler de lá num único sopro e como se desconhece a existência de vírgulas e pontos uma história sem pé nem cabeça sobre uma mulher guerreira que tinha existido milhares de anos atrás.

A Andarilha, como era chamada, andava de vilarejo em vilarejo combatendo demônios e dragões, salvando povos inteiros da destruição sem quase nunca receber algo em troca. Em uma de suas batalhas, recebeu a ajuda inesperada de outra mulher, que a partir de então passou a acompanhá-la em suas aventuras. Certa noite, quando conversavam perto da fogueira, a Andarilha dividiu com a nova companheira os segredos que seus ancestrais contavam nas noites da Grande Fogueira, verdades sobre o ser e a terra, lições que assombrava e que fascinavam os corações de todos. Um desses segredos era a história do surgimento do mundo e de todas as coisas que existem.

No princípio, diziam, só o que existia era um imenso abismo. Certo dia, porém, apareceu no fundo desse abismo um outro abismo, que era na verdade uma cópia exata do primeiro, e que por isso mesmo tinha também um outro abismo no fundo, e esse outro abismo tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo, que tinha um outro abismo,

Nenhum comentário: