terça-feira, 17 de setembro de 2019

Antero ficou morando em Machu Picchu Pueblo por mais dois anos depois que nos conhecemos lá. Ele e Ruth acabaram se casando, então ela engravidou e os dois foram morar no leste da África, onde uma prima dela arrumou um bom emprego pra ele. E é onde estão até hoje, com duas filhas lindas que a cada dia que passa se parecem mais com a mãe. Trocamos notícias de vez em quando, e ainda espero que algum dia possamos todos nos reencontrar.

Na tarde em que os dois se conheceram, eu estava sozinho à margem do Urubamba, meditando, como costumava fazer algumas vezes no tempo que passei por lá. Quando voltei ao pueblo, no fim daquele dia, fiquei sabendo por um menino de uns oito anos – que veio perguntar o que eu estava escrevendo em meu caderno – que ficaríamos sem energia elétrica até a manhã seguinte. Voltei pra hospedagem antes que escurecesse totalmente, e aí fiquei um bom tempo à janela do quarto, enquanto anoitecia, vendo as ruelas se encherem de luzes de velas, lanternas e displays de celulares.

No fim, não resisti: fui andar também pelas ruas escuras. Ia passando por pessoas sem rosto, por pequenos focos de luz que dançavam na calçada, sem saber muito bem pra onde estava indo, se é que estava indo pra algum lugar, quando passou por mim essa mulher alta, de pele escura e com os cabelos muito lisos, com um sorriso tão luminoso e um par de olhos tão brilhantes que, infelizmente pra quem não gosta de clichês, a escuridão em volta dela desaparecia por completo. Uns dez metros adiante, depois que a vi, cheguei ao pé de uma escada e reconheci, sentado no quarto ou quinto degrau, Antero, com os olhos igualmente brilhantes e uma expressão de felicidade no rosto. Tentou disfarçar quando me reconheceu também.

– Ó, R, você acha que a gente pode achar um significado no apagão assim como antigamente davam significados pra um eclipse?

– Ãh... – hesitei. – Tenho a impressão de que hoje em dia ainda tem muita gente que dá significado pra um eclipse.

Ele sorriu e balançou a cabeça, contrariado, enquanto eu me sentava ao seu lado na escada.

– Um pouco antes de vir pra cá – ele falou – quando eu estava em Cuzco, fui almoçar com uma amiga italiana e um cara muito novo que era israelense. Aí, lá pelas tantas, do nada, no meio da conversa, a mulher começa a dizer pro moço que não é nada pessoal, veja bem, longe dela dizer uma coisa assim, mas que por razões políticas, ideológicas, ela prefere a Palestina. O rapaz baixa os olhos, diz “se você gosta de terroristas”, pega o prato e sai pra se servir outra vez no buffet. A italiana fica olhando pra mim com os olhos arregalados. “Eu e a minha língua imensa”, ela diz. O rapaz contou depois sobre os anos de serviço obrigatório que tinha prestado ao exército israelense. – Fez uma pequena pausa, depois concluiu: – Uma pessoa de carne e osso, sabe, que viveu tudo aquilo, sentado, ali, almoçando com a gente. Isso invade um pouco o nosso campo de autoridade pra expressar qualquer opinião que seja sobre o assunto.

– Foda – comentei. Aguardei uns segundos e depois falei: – Não seja mentiroso.

Deixei que ele soubesse que eu estava olhando pra sua mão esquerda, onde alguém tinha feito a inscrição à caneta: Ama Llulla, que em quechua quer dizer exatamente isso, “não seja mentiroso” – um dos três maiores princípios morais dos incas.

Ele sorriu, agora como uma criança que foi pega numa travessura. Levantou os olhos em direção aonde tinha ido a mulher de olhos brilhantes, mas agora, ali, só era possível enxergar o mais absoluto breu. Levantou-se, de repente, um pouco sem jeito e visivelmente agitado.

– Desculpa aí – ele disse. – Não tem como eu falar nada sobre isso agora. – Desceu os degraus e fez menção de que ia embora, mas aí parou e começou a me contar o que podia: – Quando caiu aquela chuva toda na hora do almoço... Eu estava na porta do restaurante, não tinha como sair, quando parou uma mulher do meu lado e começou a puxar conversa. Era bonita, se chamava Elizete. Disse que era casada e que tinha uma filha de dois anos, mas que estava viajando sozinha, de férias de algum trabalho ligado a produtos de beleza. “Eu me sinto solteira”, ela falou. Aí eu fiquei olhando pra ela de um jeito que deixou ela meio desconcertada, eu acho, mas é porque eu também fiquei desconcertado, na hora... Quando a chuva passou, saí caminhar sem rumo pela cidade. Andei por umas duas horas e, no fim, foi ali na frente da igreja que a Ruth... Na frente da fonte...

Ficou em silêncio, olhando adiante, como se pudesse ver alguma coisa, depois tornou a se agitar, voltou-se pra mim e disse apressado:

– Não tem como eu falar sobre isso agora. Desculpa. Amanhã. Vocês vão acabar se conhecendo, de qualquer jeito.

E, dizendo isso, desapareceu no escuro.

Sorri.

“Com certeza”, pensei, “a gente vai acabar se conhecendo.” Depois, divertido, quase falei em voz alta: “Já não está suficientemente claro pra todo mundo?”

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