Antero
ficou morando em Machu Picchu Pueblo por mais dois anos depois que nos conhecemos
lá. Ele e Ruth acabaram se casando, então ela engravidou e os dois foram morar
no leste da África, onde uma prima dela arrumou um bom emprego pra ele. E é onde
estão até hoje, com duas filhas lindas que a cada dia que passa se parecem mais
com a mãe. Trocamos notícias de vez em quando, e ainda espero que algum dia
possamos todos nos reencontrar.
Na
tarde em que os dois se conheceram, eu estava sozinho à margem do Urubamba, meditando,
como costumava fazer algumas vezes no tempo que passei por lá. Quando voltei ao
pueblo, no fim daquele dia, fiquei sabendo por um menino de uns oito
anos – que veio perguntar o que eu estava escrevendo em meu caderno – que
ficaríamos sem energia elétrica até a manhã seguinte. Voltei pra hospedagem
antes que escurecesse totalmente, e aí fiquei um bom tempo à janela do quarto, enquanto
anoitecia, vendo as ruelas se encherem de luzes de velas, lanternas e displays
de celulares.
No
fim, não resisti: fui andar também pelas ruas escuras. Ia passando por pessoas
sem rosto, por pequenos focos de luz que dançavam na calçada, sem saber muito
bem pra onde estava indo, se é que estava indo pra algum lugar, quando passou
por mim essa mulher alta, de pele escura e com os cabelos muito lisos, com um
sorriso tão luminoso e um par de olhos tão brilhantes que, infelizmente pra
quem não gosta de clichês, a escuridão em volta dela desaparecia por completo. Uns
dez metros adiante, depois que a vi, cheguei ao pé de uma escada e reconheci,
sentado no quarto ou quinto degrau, Antero, com os olhos igualmente brilhantes
e uma expressão de felicidade no rosto. Tentou disfarçar quando me reconheceu
também.
–
Ó, R, você acha que a gente pode achar um significado no apagão assim como
antigamente davam significados pra um eclipse?
–
Ãh... – hesitei. – Tenho a impressão de que hoje em dia ainda tem muita gente que
dá significado pra um eclipse.
Ele
sorriu e balançou a cabeça, contrariado, enquanto eu me sentava ao seu lado na
escada.
–
Um pouco antes de vir pra cá – ele falou – quando eu estava em Cuzco, fui
almoçar com uma amiga italiana e um cara muito novo que era israelense. Aí, lá
pelas tantas, do nada, no meio da conversa, a mulher começa a dizer pro moço que
não é nada pessoal, veja bem, longe dela dizer uma coisa assim, mas que por
razões políticas, ideológicas, ela prefere a Palestina. O rapaz baixa os olhos,
diz “se você gosta de terroristas”, pega o prato e sai pra se servir outra vez
no buffet. A italiana fica olhando pra mim com os olhos arregalados. “Eu e a
minha língua imensa”, ela diz. O rapaz contou depois sobre os anos de serviço
obrigatório que tinha prestado ao exército israelense. – Fez uma pequena pausa,
depois concluiu: – Uma pessoa de carne e osso, sabe, que viveu tudo aquilo, sentado,
ali, almoçando com a gente. Isso invade um pouco o nosso campo de autoridade pra
expressar qualquer opinião que seja sobre o assunto.
–
Foda – comentei. Aguardei uns segundos e depois falei: – Não seja mentiroso.
Deixei
que ele soubesse que eu estava olhando pra sua mão esquerda, onde alguém tinha
feito a inscrição à caneta: Ama Llulla, que em quechua quer dizer
exatamente isso, “não seja mentiroso” – um dos três maiores princípios morais
dos incas.
Ele
sorriu, agora como uma criança que foi pega numa travessura. Levantou os olhos
em direção aonde tinha ido a mulher de olhos brilhantes, mas agora, ali, só era
possível enxergar o mais absoluto breu. Levantou-se, de repente, um pouco sem
jeito e visivelmente agitado.
– Desculpa aí – ele disse. – Não tem como eu
falar nada sobre isso agora. – Desceu os degraus e fez menção de que ia embora,
mas aí parou e começou a me contar o que podia: – Quando caiu aquela chuva toda
na hora do almoço... Eu estava na porta do restaurante, não tinha como sair,
quando parou uma mulher do meu lado e começou a puxar conversa. Era bonita, se
chamava Elizete. Disse que era casada e que tinha uma filha de dois anos, mas
que estava viajando sozinha, de férias de algum trabalho ligado a produtos de
beleza. “Eu me sinto solteira”, ela falou. Aí eu fiquei olhando pra ela de um
jeito que deixou ela meio desconcertada, eu acho, mas é porque eu também fiquei
desconcertado, na hora... Quando a chuva passou, saí caminhar sem rumo pela
cidade. Andei por umas duas horas e, no fim, foi ali na frente da igreja que a
Ruth... Na frente da fonte...
Ficou
em silêncio, olhando adiante, como se pudesse ver alguma coisa, depois tornou a
se agitar, voltou-se pra mim e disse apressado:
–
Não tem como eu falar sobre isso agora. Desculpa. Amanhã. Vocês vão acabar se
conhecendo, de qualquer jeito.
E,
dizendo isso, desapareceu no escuro.
Sorri.
“Com
certeza”, pensei, “a gente vai acabar se conhecendo.” Depois, divertido, quase
falei em voz alta: “Já não está suficientemente claro pra todo mundo?”
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