domingo, 8 de setembro de 2019

Não fale o silêncio, disseram.
Melhor ficar em silêncio, disseram na noite.
Diga o que dizemos, diga o que queremos ouvir.
Não diga o que não nos diz.

Se eu ouço vozes?, perguntam-me.
Sim.
Sempre ouvi.
Atentamente, cada uma delas e todas.

ela caminha devagar até a janela, apoia-se no parapeito e espia lá fora. “Então é só um jogo”, ela sussurra. Ouve-se o ruído de carros e motocicletas, mais nada, por alguns minutos. Qualquer palavra ganha um peso muito grande, cada pequeno gesto é um significado demais. “Meu pensamento”, ela diz, “é aquele casal atravessando a rua de mãos dadas a esta hora.”

(Será que ainda pode piorar?, às vezes eu acho que isso tudo ainda é só a antessala do Absurdo.

Derramaram uma gota do meu sangue, não era nada. Roubaram frutos do meu trabalho, nasceram outros. Me feriram sem querer, por querer, por prazer, por nada. Na manhã seguinte, eu já nem me lembrava. Derramaram três ou quatro gotas do meu sangue, se doeu, foi pouco. Trataram-me com desprezo, acontece o tempo todo, acontece com todo mundo, acontece, coisas ruins acontecem. Fizeram coisas ruins acontecer comigo. Fizeram de propósito, eu sei, quiseram mesmo que eu soubesse. Derramaram mares do meu sangue, agonizei, tiraram de mim o quase nada que no fim já era menos do que um resto de migalhas, derrotaram até a mais remota chance de talvez ter esperanças. Agora ficou só um imenso NÃO esvaziando as sobras. E ainda está tudo bem comigo. A vida continua.

(Há muitos anos frequento este mesmo café e só agora reparei, ao lado da cristaleira, em um pequeno tripé de ferro com um tampo de mármore muito branco e, sobre ele, um pequeno vaso de porcelana contendo uma única rosa que daqui até parece de verdade, mas que é de um azul meio improvável.  “Por que será que desenham flores em vasos de flores”, eu penso, e suponho que nada disso acrescentará nada em absolutamente nada na minha vida. Melhor não reduzir tudo a uma única explicação, sabe, é melhor girar de novo as lentes.)

Ou porque eu tenho as palavras erradas
Ou porque eu não tenho nenhuma
Ou porque eu tenho palavras demais
Ou por que cargas d'água meu Deus

Há quando o conhecer dispersa há quando o não saber concentra
Há quando o pertencer liberta há quando o ter quer ir não deixa
Há de antes
Adiantes

{à sombra de um delírio em flor}

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