Quando Fê chegou em casa naquela tarde, encontrou Dani
dormindo sem nenhuma roupa no chão da sala, as pernas e os braços abertos como
o Homem Vitruviano do da Vinci, as luzes apagadas e o celular tocando
música clássica. Fê suspeitava de que fosse Brahms: não entendia muito de
música clássica, mas tinha aprendido alguma coisa depois de nove meses
namorando com Dani – e agora dividindo apartamento. Sentiu o cheiro de incenso de
alecrim. Teve vontade de ir deitar-se também no chão da sala, mas em vez disso foi
largando as suas coisas no caminho até o sofá e desabou de bruços sobre ele.
– Campos de centeio – disse uma voz rouca e lenta vinda do
chão.
– Não sei do que você está falando – resmungou Fê – mas acho
que eu diria “limoeiros amarelos”.
Demorou vários segundos até que Dani voltasse a falar, ainda
com a voz grave e arrastada:
– Sim, tem razão. Também os limoeiros amarelos. Claro.
Uma brisa imperceptível agitava as cortinas. Tinha feito
muito calor durante o dia, mas agora a temperatura estava começando a cair. A
música terminou, ficou tudo muito quieto, depois começou a tocar outra música de
Brahms, se é que era mesmo Brahms. Dani rolou o corpo de lado para ficar de
frente para Fê.
– Sonhei que estava indo a uma reunião de negócios em um tipo
de restaurante subterrâneo – contou. – Alguém queria me vender uma arma proibida,
a situação toda era bastante perigosa. Era só eu e um cara muito grande numa
mesa, e ele estava falando que algumas das maiores atrocidades já cometidas pela humanidade tinham sido cometidas em nome do amor. Falava que o amor não existe,
que só o que existe é o egoísmo, que foi por egoísmo que a gente inventou
o amor, blá, blá, blá, blá, blá... É engraçado como essa ideia é usada para
justificar comportamentos muito piores do que aqueles movidos pelo “egoísmo” de
se amar alguém. Mas enfim, a situação no restaurante era cada vez mais tensa, e
eu comecei a ver que ao redor da nossa mesa tinha muitos homens armados,
olhando sérios para mim. Tive uma sensação horrível, um aperto no peito, aquilo
estava começando a virar um pesadelo... Mas aí você chegou. Eu acordei, dormi
outra vez, acordei de novo, dormi...
Fê se ajeitou um pouco no sofá, também para poder olhar para
Dani. Ficaram assim, imóveis, olhando-se nos olhos por um longo tempo.
– Se uma pessoa diz uma palavra – disse Fê – por exemplo: “pêssego”...
Você tem uma imagem mental para essa palavra, você imagina um pêssego, vê
ele na sua cabeça. Mas esse pêssego que você vê aí é sempre diferente do
pêssego que eu estava pensando quando falei a palavra. Sempre. É menor, sei lá,
mais amargo, mais maduro. Mais suculento. Ou talvez você nem goste de pêssego.
Talvez ele te faça lembrar de alguma história triste da infância, ou de alguém
que você já amou e que a vida te levou embora. É um pêssego muito cheio de
informações, e todas essas informações são muito diferentes das que
estavam ligadas ao pêssego que eu pensei. Porque a minha vó tinha pessegueiros no
quintal. Porque pêssego em calda é minha sobremesa preferida. Ou sei lá por que.
A música parou de repente – o celular ficou sem bateria –
mas ninguém ali se importava com o silêncio. Começavam a piscar os olhos
demoradamente, os pensamentos vagavam cada vez menos lógicos . Foi Dani quem
insistiu em manter uma conversa:
– Eu estava pensando... Tem uns livros de autoajuda, uns discursos motivacionais... Tem umas coisas
que deviam vir com um selo dizendo: “isto aqui pode ter o mesmo efeito de jogar
água em quem está se afogando” ou sei lá... “Dar um martelo a quem só tem
parafuso”... Ou...
Fê estava de olhos fechados, e Dani já não conseguia mais
manter a linha de raciocínio. Ficou pensando por alguns segundos, e tudo que
conseguiu acrescentar à lista foi:
– “Pérolas aos porcos”...
Desistiu de tentar manter os olhos abertos assim como
desistiu de pensar. Já estava quase
cochilando de novo quando ouviu Fê dizer:
– E eu vou ter que insistir nos limoeiros amarelos.
– E eu vou ter que insistir nos limoeiros amarelos.
“💜”,
pensou Dani. Mas já não conseguia dizer mais nada.
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