Não sei por que pensei
alguma vez que não há poesia na realidade
ou que o nome das
coisas do mundo não traduz com muito acerto as coisas da alma
ou que o retrato de um
dia não atinge nem a sombra do ideal eterno de entender a eternidade – mas
aconteceu que hoje
ao fim dessa jornada
que eu chamava de espiritual e grandiosa
nada me pareceu mais
espiritual e grandioso do que estar no mundo
e passar distraído
pelas flores da praça enquanto tento me lembrar se embarco às oito ou às nove
e me despedir da
boliviana com quem conversei tantas vezes num café sem nunca perguntar seu nome
e lamentar que eu
tenha adiado tanto a minha vontade de fotografar o Cristo indígena na cruz da
igreja que estou indo embora sem ter feito isso
e arrumar as malas com
um misto de alegria e medo e uma profunda tristeza pelo fim da caminhada
e recolher memórias e
embalar com cuidado os presentes frágeis que comprei para uns amigos
e reparar que há algo
de banal e cinematográfico em estar chovendo no dia em que ando por aí dizendo
adeus a Machu Picchu
e perceber que estar
em casa é menos uma localização geográfica e mais o acolhimento que afinal
oferecemos a nós mesmos
e observar as
crianças, homens e mulheres com suas vozes cotidianas ainda prontas para me
chamar de amigo
e doar as roupas e
vender os livros de que não preciso e que já não quero ter pesando na bagagem
e confessar a mim
mesmo que desperdicei o meu amor inutilmente sempre que o contive por antecipar
este momento
e chorar como um
menino que se vê obrigado a devolver um brinquedo que tão gentilmente lhe
emprestaram
e ter a sensação
ligeira de que amanhã ou depois eu vou poder descansar de novo em minha pedra
preferida à margem do Rio Urubamba
e abraçar a moça da
hospedagem que foi minha filha e mãe e irmã ao longo destes dias em que nunca
nos dissemos muito mais do que “boa tarde”
e admitir enfim que
não há nada mais sagrado em nenhum ser humano do que o simples fato dele ser
humano
e que uma prece pode
não ser mais do que esse movimento tão sutil dos lábios ao contar um troco
e que oferendas podem
não ser mais do que anotar um número de telefone em um post-it cor de rosa
e que um ritual pode
não ser mais do que se deter à escada e amarrar um dos cadarços
porque Deus está em
silêncio e imóvel no ruidoso coração do movimento
e em tudo aquilo que
nós não estamos
nem estaremos nem
nunca estivemos
e que só pertence a um
homem num lugar de névoa que nos toca mas ninguém alcança
porque é Deus e não é
homem
e porque é Deus e
pronto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário