quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Não sei por que pensei alguma vez que não há poesia na realidade

ou que o nome das coisas do mundo não traduz com muito acerto as coisas da alma

ou que o retrato de um dia não atinge nem a sombra do ideal eterno de entender a eternidade – mas aconteceu que hoje

ao fim dessa jornada que eu chamava de espiritual e grandiosa

nada me pareceu mais espiritual e grandioso do que estar no mundo

e passar distraído pelas flores da praça enquanto tento me lembrar se embarco às oito ou às nove

e me despedir da boliviana com quem conversei tantas vezes num café sem nunca perguntar seu nome

e lamentar que eu tenha adiado tanto a minha vontade de fotografar o Cristo indígena na cruz da igreja que estou indo embora sem ter feito isso

e arrumar as malas com um misto de alegria e medo e uma profunda tristeza pelo fim da caminhada

e recolher memórias e embalar com cuidado os presentes frágeis que comprei para uns amigos

e reparar que há algo de banal e cinematográfico em estar chovendo no dia em que ando por aí dizendo adeus a Machu Picchu

e perceber que estar em casa é menos uma localização geográfica e mais o acolhimento que afinal oferecemos a nós mesmos

e observar as crianças, homens e mulheres com suas vozes cotidianas ainda prontas para me chamar de amigo

e doar as roupas e vender os livros de que não preciso e que já não quero ter pesando na bagagem

e confessar a mim mesmo que desperdicei o meu amor inutilmente sempre que o contive por antecipar este momento

e chorar como um menino que se vê obrigado a devolver um brinquedo que tão gentilmente lhe emprestaram

e ter a sensação ligeira de que amanhã ou depois eu vou poder descansar de novo em minha pedra preferida à margem do Rio Urubamba

e abraçar a moça da hospedagem que foi minha filha e mãe e irmã ao longo destes dias em que nunca nos dissemos muito mais do que “boa tarde”

e admitir enfim que não há nada mais sagrado em nenhum ser humano do que o simples fato dele ser humano

e que uma prece pode não ser mais do que esse movimento tão sutil dos lábios ao contar um troco

e que oferendas podem não ser mais do que anotar um número de telefone em um post-it cor de rosa

e que um ritual pode não ser mais do que se deter à escada e amarrar um dos cadarços

porque Deus está em silêncio e imóvel no ruidoso coração do movimento

e em tudo aquilo que nós não estamos

nem estaremos nem nunca estivemos

e que só pertence a um homem num lugar de névoa que nos toca mas ninguém alcança

porque é Deus e não é homem

e porque é Deus e pronto.

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