quarta-feira, 4 de março de 2020

– Machu Picchu já foi cruel com você? – perguntou Antero, na segunda e última vez que estivemos juntos no “Santuário”, que é como são chamadas as ruínas. Aliás, a bem da verdade, estávamos no topo da montanha de nome Machu Picchu, a mais alta dos arredores, e embora o acesso à montanha passe pelas ruínas, não há indícios de nenhuma construção inca no alto dela.

– Quer saber se eu fui atacado por algum cachorro? – brinquei, em referência ao dia em que nos conhecemos, logo depois dele ter sido inexplicavelmente atacado por um cachorro amigável. – Teve umas pequenas crueldades – confessei, mas não me sentia muito disposto a ter aquela conversa ali, naquele lugar, então mantive o tom de humor: – Mas acho que o pior é quando eu quero andar por aí e começa a chover.

Antero ficou em silêncio, sequer sorriu. Já tínhamos conversado mais de uma vez sobre as sombras que existem no que quer que possamos chamar de processo de iluminação espiritual, uma ideia muito bem ilustrada por Jung ao dizer que nenhuma árvore cresce até o céu sem ter raízes tão profundas a ponto de tocar o inferno. Talvez naquele momento eu só quisesse desfrutar da proximidade com o céu, sem pensar em mais nada. Mas Antero não era dado a períodos muito longos de silêncio contemplativo, e quem sabe, até, seu interesse em retomar o tema fosse só mais uma das pequenas crueldades de Machu Picchu comigo.

Então ele me contou uma história.

Lembrou, mais uma vez, de quando atravessou a fronteira do Brasil com a Bolívia em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, acrescentando que vinha de uma série de relacionamentos frustrados e até nocivos, incluindo casos com mulheres casadas que quase tinham destruído a sua vida e as de muitos outros. Nunca tinha falado sobre isso, o que, no fim das contas, fez com que o meu estado de ânimo em relação à conversa mudasse e eu começasse a prestar atenção.

Falou um pouco sobre o sentimento de solidão durante todo o trajeto do Trem da Morte, mas também sobre uma certa resistência que sentia ao impulso de procurar por alguém ou flertar com desconhecidas. Disse que tinha a impressão de que sua cabeça “esvaziava” conforme ia ganhando altitude até chegar a La Paz, e que se sentia “em branco” no momento em que avistou o Lago Titicaca pela primeira vez, no caminho até Puno, no Peru.

– Quando cheguei lá – disse, – era como se toda a minha vida até então nunca tivesse acontecido. Era como se eu nunca tivesse amado ninguém.

Fez uma pausa, lançando para mim um olhar significativo de quem se lembrava de eu ter-lhe dito algo muito parecido em uma de nossas conversas. Depois voltou a olhar para a paisagem com a expressão um pouco enevoada e prosseguiu:

– Foi quando ela apareceu. Achei que era o destino, sei lá, era uma das mulheres mais lindas que eu já tinha visto na vida, parada, sozinha, na beira do lago, a luz batendo de um jeito que só aumentava a sensação de sonho. A gente conversou por uns quinze minutos antes de aparecer o namorado dela. Eu não sabia que existia um.

Fez outra pausa, dessa vez mais curta e carregada de um pouco de raiva, mas quando recomeçou, estava se divertindo.

– Ficamos amigos, Julio, Mirela e eu. Passeamos juntos, saímos para beber, dançar, conversávamos sobre qualquer coisa... E eu até que estava me saindo bem fingindo que não sentia nada por Mirela. Mas era forte demais, custava muito. Chegou uma hora que eu não aguentei, aí eu só segui viagem...

Acenou com a cabeça em direção às ruínas lá embaixo:

– Cheguei aqui mais de um mês depois. Passei por Arequipa, Nazca, fiquei um bom tempo em Cusco. Mas assim que botei os pés no Santuário, adivinha quem eu encontrei.

Não consegui conter um sorriso, mas imagino que era esse o efeito que ele pretendia. Então ele se virou para mim cheio de energia, como para dizer que ainda não tinha acabado, e que o que vinha a seguir era ainda pior do que aquilo.

­– Julio fingiu indignação quando me viu. Caminhou na minha direção agitando os braços e perguntou: “O que você faz aqui? Essa é a nossa Machu Picchu!”

– Ai – foi só o que consegui comentar.

Antero balançou a cabeça, reprovando a lembrança, algo entre divertido e profundamente magoado. Eu quase podia ver o casal brincando de ter um Santuário só deles, onde ninguém mais podia entrar, e a frustração de Antero logo em sua chegada a Machu Picchu. Não era a primeira vez que eu via o destino brincar assim com alguém, com aquela dose concentrada de crueldade e ironia. E – infelizmente, devo dizer – sabia que não seria também a última.

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