–
Machu Picchu já foi cruel com você? – perguntou Antero, na segunda e última vez
que estivemos juntos no “Santuário”, que é como são chamadas as ruínas. Aliás,
a bem da verdade, estávamos no topo da montanha de nome Machu Picchu, a mais
alta dos arredores, e embora o acesso à montanha passe pelas ruínas, não há
indícios de nenhuma construção inca no alto dela.
–
Quer saber se eu fui atacado por algum cachorro? – brinquei, em referência ao
dia em que nos conhecemos, logo depois dele ter sido inexplicavelmente atacado
por um cachorro amigável. – Teve umas pequenas crueldades – confessei, mas não
me sentia muito disposto a ter aquela conversa ali, naquele lugar, então
mantive o tom de humor: – Mas acho que o pior é quando eu quero andar por aí e começa
a chover.
Antero
ficou em silêncio, sequer sorriu. Já tínhamos conversado mais de uma vez sobre
as sombras que existem no que quer que possamos chamar de processo de
iluminação espiritual, uma ideia muito bem ilustrada por Jung ao dizer que
nenhuma árvore cresce até o céu sem ter raízes tão profundas a ponto de tocar o
inferno. Talvez naquele momento eu só quisesse desfrutar da proximidade com o
céu, sem pensar em mais nada. Mas Antero não era dado a períodos muito longos
de silêncio contemplativo, e quem sabe, até, seu interesse em retomar o tema
fosse só mais uma das pequenas crueldades de Machu Picchu comigo.
Então
ele me contou uma história.
Lembrou,
mais uma vez, de quando atravessou a fronteira do Brasil com a Bolívia em Corumbá,
no Mato Grosso do Sul, acrescentando que vinha de uma série de relacionamentos
frustrados e até nocivos, incluindo casos com mulheres casadas que quase tinham
destruído a sua vida e as de muitos outros. Nunca tinha falado sobre isso, o que, no fim
das contas, fez com que o meu estado de ânimo em relação à conversa mudasse e
eu começasse a prestar atenção.
Falou
um pouco sobre o sentimento de solidão durante todo o trajeto do Trem da Morte,
mas também sobre uma certa resistência que sentia ao impulso de procurar por
alguém ou flertar com desconhecidas. Disse que tinha a impressão de que sua
cabeça “esvaziava” conforme ia ganhando altitude até chegar a La Paz, e que se
sentia “em branco” no momento em que avistou o Lago Titicaca pela primeira vez,
no caminho até Puno, no Peru.
–
Quando cheguei lá – disse, – era como se toda a minha vida até então nunca
tivesse acontecido. Era como se eu nunca tivesse amado ninguém.
Fez
uma pausa, lançando para mim um olhar significativo de quem se lembrava de eu
ter-lhe dito algo muito parecido em uma de nossas conversas. Depois voltou a
olhar para a paisagem com a expressão um pouco enevoada e prosseguiu:
–
Foi quando ela apareceu. Achei que era o destino, sei lá, era uma das mulheres
mais lindas que eu já tinha visto na vida, parada, sozinha, na beira do lago, a
luz batendo de um jeito que só aumentava a sensação de sonho. A gente conversou
por uns quinze minutos antes de aparecer o namorado dela. Eu não sabia que
existia um.
Fez
outra pausa, dessa vez mais curta e carregada de um pouco de raiva, mas quando
recomeçou, estava se divertindo.
–
Ficamos amigos, Julio, Mirela e eu. Passeamos juntos, saímos para beber,
dançar, conversávamos sobre qualquer coisa... E eu até que estava me saindo bem
fingindo que não sentia nada por Mirela. Mas era forte demais, custava muito.
Chegou uma hora que eu não aguentei, aí eu só segui viagem...
Acenou
com a cabeça em direção às ruínas lá embaixo:
–
Cheguei aqui mais de um mês depois. Passei por Arequipa, Nazca, fiquei um bom
tempo em Cusco. Mas assim que botei os pés no Santuário, adivinha quem eu
encontrei.
Não
consegui conter um sorriso, mas imagino que era esse o efeito que ele
pretendia. Então ele se virou para mim cheio de energia, como para dizer que
ainda não tinha acabado, e que o que vinha a seguir era ainda pior do que aquilo.
–
Julio fingiu indignação quando me viu. Caminhou na minha direção agitando os
braços e perguntou: “O que você faz aqui? Essa é a nossa Machu Picchu!”
–
Ai – foi só o que consegui comentar.
Antero
balançou a cabeça, reprovando a lembrança, algo entre divertido e profundamente
magoado. Eu quase podia ver o casal brincando de ter um Santuário só deles,
onde ninguém mais podia entrar, e a frustração de Antero logo em sua chegada a
Machu Picchu. Não era a primeira vez que eu via o destino brincar assim com
alguém, com aquela dose concentrada de crueldade e ironia. E – infelizmente,
devo dizer – sabia que não seria também a última.
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