quinta-feira, 7 de maio de 2020

mal conseguia dividir com vírgulas e eu tentando lhe explicar que a luz distorce o espaço,

que a luz anda tão rápido que o tempo deixa de fazer sentido,

nem gostava de poesia e eu tentando lhe explicar que num poema “eu” e “você” são pura imagem e não pessoas reais,

não querendo caminhar na superfície, longe dos bares e cafés onde as definições de tudo tinham que ser sempre as menos óbvias como “solidão é não ter pra quem ligar numa segunda à tarde”,

mas ela gostava do lugar-comum e eu nunca acreditei nos homens que não choram,

gostava mesmo era dela,

acho até que muito mais do que seria aconselhável se gostar de alguém,

não éramos opostos, só atraídos, até o dia em que ela me deu as costas como se eu morresse, ou ela, e todos os sonhos despencaram do seu castelo nas nuvens sem deixar nem ao menos um cheiro de chuva,

seria mais fácil se as histórias inventadas tivessem menos consequências reais,

seria mais fácil entender que um mais um não são dois do que seguir em frente só um,

segunda-feira eu não liguei, ainda febril e delirante achando que

sua raiva atravessava a cidade e reverberava nas paredes do quarto em que eu passava a noite escura da minha alma,

durou bem mais do que mil anos,

e quando amanhecia,

saí pelas ruas visitando universos em que ela, em nossos tempos, nunca teve coragem de me acompanhar,

casas de umbanda, teatro interativo, livros de foucault,

numa conversa alguém me disse “amarelo-almodóvar”,

um balconista a quem pedi cigarros perguntou “há quanto tempo a gente tenta te dizer que não?”,

uma garota punk ao pé da escada me abraçou ao meio-dia

e eu já não era aquele ser barroco estilhaçado agonizante estranho aos deuses e à vida prática,

no fundo de um mar de mágoas

tentando respirar entre as algas.

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