terça-feira, 9 de junho de 2020

Ninguém ouvia o grito.

Nem poderiam fazer nada se escutassem.

Cidades inteiras desmoronavam no meu peito, eu já não tinha um reino pra oferecer em troca de um cavalo que me levasse de lá, chovia fogo, em minhas mãos começava a secar o sangue dos amigos que morreram nos meus braços.

Mas era uma quarta-feira à noite, eu estava na casa da Janaína e ela estava preparando um bolo pro aniversário de um sobrinho.

Falávamos sobre qualquer coisa do trabalho, ou sobre alguém, não lembro, e de repente reparei no quanto ela estava concentrada no que fazia. Era uma espécie de oração, tinha algo de muito sagrado em estar preparando aquele bolo.

Submersa em um tipo de transe amoroso, como se não existisse nada mais bonito e importante no mundo, sem desviar os olhos nem por um segundo, em silêncio, esquecida de mim, de tudo, espalhava os morangos sobre o bolo como se dançasse, ou como se provasse um vestido, e por um instante sorriu, encantada com o que fazia.

Eu poderia suportar o horror, enfrentar a morte de peito aberto, receber todos os golpes, perder tudo de novo e de novo, mas só queria que nada no mundo fosse capaz de roubar da Janaína a sensação daquele instante.

A dor maior do amor não é quando lhe falta reciprocidade. A dor maior do amor é quando ele nos obriga a olhar de frente pra essa nossa impotência.

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