De
onde eu estava, se olhasse em direção a Antero, podia ver tatuada em seu braço
direito, em letra cursiva, a palavra “alhures”, embora eu não conseguisse ler
àquela distância. Próximo a ele, um pouco à sua esquerda, estava a fonte do
barulho constante que ouvíamos: as águas que despencavam em meio às pedras rumo
ao Urubamba, lá embaixo, atravessando por entre as calçadas de Machu Picchu
Pueblo. Eu estava confortável em um banco de madeira escura, e tinha a palma da
mão direita virada pra cima a poucos centímetros da palma da mão esquerda de
Ruth, que tinha a palma da mão direita virada pra cima a poucos centímetros da
palma da minha mão esquerda, em um exercício que Antero insistiu pra que ela
fizesse também comigo, depois de tê-lo impressionado tanto no dia anterior, e
que ele agora retratava a lápis em seus próprios diários de Machu Picchu, perto
do fim de uma tarde quente de segunda-feira.
Havia
algo de muito familiar na voz de Ruth, assim como nas palavras, e uma
profundidade tão grande em seu olhar que eu mal conseguia desviar os olhos. Uma
transparência única, permitindo entrever o colorido assombroso de uma alma que
se estendia pra muito além, misteriosa e ao mesmo tempo simples e direta, de
longe uma das pessoas mais fascinantes que já tive a felicidade de conhecer.
Seu exercício não era mais do que uma leitura de aura, mas feita por ela,
realmente, impressionava até mesmo alguém mais acostumado a coisas do gênero,
como era o meu caso. Apenas percebendo as minhas energias, Ruth foi capaz de
contar detalhes sobre várias épocas da minha vida, desde a infância, segredos
que talvez eu preferisse esconder até de mim mesmo, revoltas, mágoas, medos:
ela não deixava passar nada, e aparentemente toda a minha história,
pensamentos, sentimentos, até os menores detalhes, estavam impressos em meu
corpo e minhas energias de forma que qualquer um pudesse ler.
Aquilo
tudo mexeu comigo a tal ponto que eu mal consigo me lembrar do que aconteceu no
restante da noite, só que, mais tarde, quando as coisas começaram a ficar
silenciosas demais, não aguentei ficar fechado em meu quarto e saí pra caminhar
um pouco, tentando arejar a cabeça. Eu me sentia pesado e tenso, discutindo em
pensamentos com vozes do passado e de um presente indefinido, vendo sangrarem
de novo feridas fechadas havia tanto tempo, e em poucos minutos de caminhada,
atravessando o silêncio desabitado de um povoado mágico demais pra minha
miséria humana, estava chorando e xingando baixo, como se pudesse me livrar de tudo apenas dando um fiozinho de voz à minha raiva e agitando
os braços. E quando me sentei à murada de um canteiro alto, onde havia somente
uma árvore não muito maior do que eu, o choro que eu chorava já era de outra
espécie, mais um lamento sem força, um choro meio que de quem desiste.
Uma
oração cansada. Um desabafo pra ninguém. Eu carregava o mundo nos ombros,
remorsos, fracassos, derrotas consecutivas pra inércia ou dependentes do ódio,
um padrão miserável e bestial de ser homem, por que, Deus, fizeste de mim poeta
em um tempo assim? Então uma vida repetidas vezes desperdiçada, aquela solidão
deserta de um vazio intergaláctico, se não fosse sempre só eu esquecido na noite,
sem ter sido chamado, nem ouvido, nem muito vagamente alcançado.
Acho
que já não chorava quando a silhueta de um casal apareceu sobre a ponte, mas o
fato é que, mesmo de longe, estava fácil de ler o quanto eu estava abatido, ali
cabisbaixo, talvez ainda resmungando alguma coisa. Os dois não hesitaram em vir
me ajudar – não sei se já tinham me reconhecido, é bem provável que sim. Só fui
reconhecê-los quando chegaram bem perto, mas nenhum de nós disse uma única
palavra. Antero se sentou à minha direita, Ruth, à minha esquerda. Passaram os
braços pelas minhas costas, encostaram suas cabeças em meus ombros. E ali
ficaram, quietos. Por longos, longos minutos.
Então
Antero disse Eu sou teu pai, e pouco depois Ruth falou também Eu sou tua mãe.
Aí
logo em seguida ele falou Eu sou teu filho, e ela também Eu sou tua filha.
E por
último disseram quase ao mesmo tempo Eu sou teu irmão, Eu sou tua irmã.
Um comentário:
Que lindo!!!
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