And then later, when it gets dark, we go home
Achou que já fazia calor o suficiente dentro do ônibus para tirar as luvas. Ouvia as conversas em bancos à frente, confundidas com o zumbido do motor e das rodas na estrada de pedras, enquanto olhava uma vez mais para a imensidão do céu estrelado lá fora. Estava no caminho de volta a San Pedro de Atacama depois de um tour astronômico no deserto, e tinha aquela música que não saía da sua cabeça, e tinha Petra.
- Não, tio, o senhor que não entendeu - ouviu uma mulher dizendo um pouco à frente. - Se a estrela mais próxima está a quatro anos-luz da Terra, quer dizer que a luz dela leva quatro anos para vir de lá até aqui.
- Proxima Centauri - ele falou para si mesmo, não alto o bastante para ser ouvido pelos outros.
- Mas isso não faz o menor sentido - protestava o tio.
Afundou-se um pouco mais no seu banco, querendo se desligar da conversa, e naquele movimento, derrubou as luvas que tinha deixado sobre os joelhos.
Then later a movie, too - and then home
Tinha derrubado a tampa da caneta e agora não conseguia mais encontrar. Estava a uns quatro mil metros acima do nível do mar, embarcada no Tren a las Nubes, no Norte da Argentina. E ia perdendo uma bela paisagem lá fora enquanto tateava pelo chão à procura de uma tampinha de caneta. Uma tampa verde horrorosa que ela vivia mordendo, mas que era, afinal, a tampa da sua caneta preferida.
Encontrou apenas um par de luvas embaixo do banco, e ninguém por perto que pudesse ser o dono delas. Achou estranho, mas não lhes deu atenção, apenas desistiu do que procurava, por um instante - e foi bem quando entrou no vagão um casal com instrumentos musicais. Ele trazia um violão e ela, um saxofone. Apresentaram-se dizendo que aquele era, seguramente, o ponto mais alto da carreira deles, e já começaram logo tocando uma das músicas de que ela mais gostava.
Olhou para o caderno e achou que já estava embriagada demais pela música, pela altitude e pelo balanço do trem, achou que estava começando a ver coisas, que não era possível, mas alguém tinha escrito algo a lápis, ali, enquanto ela não olhava. E não apenas qualquer coisa, mas "Perfect day" - que era exatamente o nome da música que estava tocando.
Oh, it's such a perfect day, I'm glad I spent it with you
Chegou um pouco mais para perto do namorado tentando se esquentar, mas ele estava concentrado afinando as cordas do violão. Olhou para as estrelas se sentindo pequena e cansada demais de ser pequena, mas ainda assim tranquila, tranquila, enquanto seus pensamentos se perdiam por aquele céu escuro. Perguntou-se qual daquelas estrelas estaria mais próxima da Terra, e por um segundo teve a impressão de ouvir claramente alguém dizendo "Proxima Centauri".
A fogueira estalou. Os grilos pareceram arquitetar-se um pouco. Estavam no alto de uma das muitas montanhas de um dos vários vales naquele ponto da fronteira entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Tinham ido passar o feriado no sítio de um parente dele. Então ele começou a tocar e ela se enrolou na coberta e ficou distraída com a fumaça que saía de sua boca quando respirava.
De repente, estranhou alguma coisa no bolso do casaco. Era um pequeno bloco de notas que ela nunca tinha visto e que não tinha a menor ideia de a quem pertencia ou como tinha ido parar ali. Vinha com um lápis de madeira que mais parecia um graveto enrolado na espiral.
- Que música é essa que você está tocando? - ela perguntou ao namorado. E ele respondeu, meio apressado entre um verso e outro, mas ela entendeu direito e anotou em seu novo bloco de notas: "Perfect day".
I thought I was someone else, someone good
A primeira coisa que viu quando abriu os olhos naquela manhã foi o rosto de Petra, mas ele ainda não sabia o nome dela. Ficou ali deitado, só olhando: era um rosto bonito, e ela dormia tão serena. As camas ficavam muito próximas naquele albergue, parecia até que se ele entendesse a mão…
Mais tarde se encontrou com ela na área comum e perguntou seu nome. Não entendeu direito da primeira vez, então perguntou "Pietra?". Ela balançou a cabeça, divertida e resignada.
- Os brasileiros sempre dizem "Pietra".
Ele a convidou para fazer um tour astronômico pelo deserto naquela noite, mas ela já estava de partida. Perguntou se ele tinha visto um pequeno bloco de anotações perto de sua cama naquela manhã. Era uma lembrança, não estava mais conseguindo encontrar, então disse que, se ele encontrasse, podia ficar com ele. Ele agradeceu, depois se despediu tentando não demonstrar o quanto lamentava ter que fazer aquilo.
No meio da tarde, quando ela já tinha ido embora, procurou um pouco em volta de suas camas para ver se dava a sorte de encontrar aquela lembrança. Mas tudo que conseguiu achar foi uma tampinha toda mordida e horrorosa de caneta verde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário