sábado, 10 de julho de 2021

Dormir na rede nunca foi um problema, e apesar de estar fazendo um frio meio fora do normal, naquela noite, também não era por isso que eu não estava conseguindo dormir direito. Eram por volta de três ou quatro horas quando resolvi me levantar um pouco e caminhar até a beira do rio, arejar a cabeça, não sei, quem sabe encontrava o sono em algum canto. Ninguém se moveu nas outras redes enquanto eu me afastava, nem havia nenhum sinal de gente acordada, ou que acordasse enquanto eu cruzava a comunidade em direção ao rio com a minha lanterna.

O rio estava cheio, e caía uma garoa fria e fina que eu jamais pensei que fosse ver cair no meio da Amazônia. Sentei-me à beira da água embrulhado em meu casaco, o gorro protegendo a cabeça, e por um instante a familiaridade do clima me distraiu, não estranhei quando reparei na canoa que vinha subindo o rio, lentamente, com um único homem que usava um remo muito grande. Ele se aproximou devagar e eu apenas esperei, como se estivesse prestes a receber um velho amigo.

- Boa noite - ele falou ao chegar mais perto.

- Boa - respondi, e eu mesmo reparei na animação da minha voz, quase destoando do clima e do horário.

Ele encostou o barco e desceu, deixando para trás o grande remo que, notei então, tinha algum tipo de escultura na alça. O homem era pequeno e meio claro para os padrões dali, com uma barba cujo avermelhado se destacava até na luz fraca e meio indireta da minha lanterna.

Ele se sentou ao meu lado e começou a enrolar fumo sem conversar muito, disse que se chamava Aru e que estava indo até a cabeceira do rio, mas estava com uma preguiça gigante - ou pelo menos foi isso que eu achei que ele tivesse dito, não entendi direito. Era calmo, falava pouco e devagar, parecia perfeitamente confortável com a garoa fria e fina e fumou tranquilamente embaixo dela até não restar mais quase nada em seu palheiro. Quando foi embora, remando muito devagar rio acima, eu tinha tanto sono que podia dormir ali mesmo. Para ser sincero, nem me lembro direito de como voltei para a rede, tenho só lembranças meio borradas como as de um sonho, ou como se elas fossem inventadas.

Só muito tempo depois me falaram sobre este ser mítico que sempre aparece no Médio e Alto Rio Negro em época de cheia. Ele provoca o frio e a chuva fina com seu remo de alça entalhada - um remo que pode dar poderes especiais a quem se apossar dele. Em sua viagem, Aru acaba provocando um dia ou dois de frio e garoa, às vezes uma névoa tão densa que mal se pode enxergar a outra margem de um rio, mesmo durante o dia.

Mas naquele tempo, eu ainda não sabia de nada disso. Quando acordei, pela manhã, só achei que a névoa caía bem na paisagem, por mais que ainda a estranhasse ali. Todos na comunidade pareciam mais quietos e lentos, o café demorou um pouco mais a sair. Seu Filisbino, nosso anfitrião, apareceu quando já começávamos a encher os primeiros copos.

- Chegou Aru - disse ele, animado.

- É, ele parou um pouco à noite - falei - mas continuou subindo o rio.

Aí Seu Filisbino passou o resto do dia olhando para mim com cara de desconfiado.

Um comentário: