sábado, 30 de outubro de 2021

… se o nome daquela cidade tinha a palavra "porto" ou era um nome de santo… a tinta do canteiro descascava, era tão colorido, talvez ele já conhecesse pelo nome qualquer pessoa que pudesse estar passando por aquela rua àquela hora da tarde… se o nome daquela cor era fúcsia, se o nome daquela flor era dente-de-leão, por que sempre os nomes, ele não estava conseguindo pensar direito… dois anos… o nome da cidade, qual era o nome da cidade… ele não aguentava mais seu trabalho, ninguém no trabalho aguentava mais ele, dois anos em coma, a família não permitia que ele a visse, ele já não tinha mais lágrimas, duas ou três mil pessoas na cidade e nenhuma delas poderia fazer nada se ele chorasse… Dália, ninguém mais tinha estado ao seu lado quando o pai morreu, mesmo que não literalmente ao lado, quando tudo que ele via eram frustrações e abandono… como era possível que ele nunca tivesse decorado o nome da cidade, o mais próximo que conseguiu chegar de Dália depois de atravessar o Atlântico, tarde demais, havia dois anos… 

 … somando as sobras e os desaforos, anônimo, Afonso achava até que tinha durado bastante… 
 
...desceu até a praia quando começou a escurecer, latido de cachorros, cheiro de manga, aqui e ali um boa tarde como vai… quem sabe… a família não permite que ele a veja, foi ela que o salvou, agora ele não podia fazer nada, a alguns milhares de milhas de casa, por ela, sem ela, sem ninguém… sentou-se à beira da praia, a brisa era morna e salgada, as ondas não lhe permitiam o silêncio… um pouco antes, então, uns cinco anos atrás, quando ele entrou no site de paquera, e todo o tempo que levou até que Dália se transformasse na única pessoa que o ouvia e logo a única pessoa para quem ele contava tudo… mas tinham sido anos depois da morte da mãe, anos depois de sua separação e ao fim de um longo tempo em que ele não tinha o menor interesse por nenhum tipo de envolvimento emocional… ajuntou um graveto no chão, escreveu…




… mas se voltasse ainda mais e mais até o princípio de todas as coisas, não estaria também chorando ou sim, ou foi assim que nasceu Afonso, aos gritos… o nome daquilo que estava sentindo, os barcos dos pescadores, aquelas cores, em breve ele já não conseguiria mais sequer distinguir o verde e o vermelho, quem dirá o salmão e o âmbar… e o que mais só vai até o poente… as ondas, pensamentos recorrentes, a espuma que se extingue tão rapidamente, Dália, adormecida há dois anos, aquele isolamento absoluto… se uma garrafa, aquelas com mensagens, mesmo que Afonso não soubesse dizer se pensava naquilo porque gostaria de enviar ou de receber alguma, mal se lembrava do que fossem mensagens e não insultos, mensagens e não recusas, mensagens humanas e não hierárquicas… 

 … talvez… se ainda mais e mais e ainda tão longe no passado… talvez antes que houvesse o tempo, ou nomes e dálias que também fossem flores, só o que lhe parecia óbvio era que pensar tinha deixado de ser uma opção, fazia tempo, algo ancestral e só seu inundava, agitava-se, transbordava… então ele também era a maré, seria sempre, mas então por que também para sempre aquela mágoa estanque… e se ele não voltasse nunca mais… e se ele não voltasse nunca mais para lugar nenhum...

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