No fim da tarde, ele estava exausto. Tinham sido quatro horas de aulas, então estava no meio daquela apresentação no shopping e à noite ainda teria ensaio com a… com qual banda era hoje? Voltou a atenção para o que estavam tocando, não podia errar agora, tudo menos errar o tema dos duendes. As crianças adoravam. Samuel nem se lembrava de alguma vez ter tido uma agenda mais tranquila, não podia reclamar. Estava vivendo de arte no Brasil em meio a uma pandemia e a um governo que… quase errou a passagem do sol para o ré. Droga, Samuel, não no tema dos duendes.
Júnior pensou que poderia morrer de tédio assistindo àquilo, mas já tinha visto piores, e o importante era que o pequeno estava adorando. Se chegasse em casa animado pelo passeio, quem sabe a mãe parasse de encher o saco dizendo que o pai não se importava. Com o tanto de dinheiro que ele mandava todos os meses, ela devia era ter vergonha de abrir a boca para dizer uma coisa dessas. E depois que era ela quem estava mimando demais o menino. Deus que perdoasse ele, mas se o filho virasse viado por causa daquele grude todo com a mãe… O menino riu alto com alguma coisa no teatrinho. Benditos duendes.
Depois da apresentação, ainda rolou um extrinha inesperado que quase virou uma janta um pouco mais reforçada, mas então Samuel se lembrou da peça que faltava para a água quente do chuveiro voltar a ficar quente de verdade, e achou que já estava mais do que na hora de resolver aquilo de uma vez por todas. A situação já vinha se enrolando havia meses, porque o problema tinha começado exatamente na mesma semana que a banda de festa se desfez, e ela era uma das que davam mais dinheiro, aí as coisas ficaram um pouco complicadas nos meses seguintes. Até por isso ele tinha aceitado algumas aulas a mais. O que não era muito a praia dele, mas ajudou a segurar as pontas. Para ser sincero, uma banda de festa chamada Bamboleiros também não era muito a praia dele, mas era melhor para pagar as contas. Dois ônibus mais tarde, quando desembarcou para ensaiar com a Negros Fatos, ainda pensava nas contas.
Depois de deixar o menino com a mãe, Júnior foi para o seu happy hour com o filho de um potencial investidor em seu futuro negócio. O pai tinha dado um ultimato para que ele não estragasse tudo outra vez, mas a essa altura ele já nem acreditava mais nos ultimatos do pai, que afinal tinha trabalhado o suficiente para juntar dinheiro para algumas gerações depois dele. O filho do empresário era um completo babaca, como já era de se esperar, e estava decidido a tratar Júnior como um mendigo. Era talvez o auge da humilhação para ele, e isso depois de anos tendo que apresentar trabalhos comprados na faculdade e dois negócios falidos no currículo. As provocações do outro acabaram num desafio para que eles fossem fazer uma aventura na rua, no submundo, no meio da ralé mesmo, de verdade. Júnior aceitou, claro, não querendo demonstrar mais fraqueza, e foi assim que eles foram parar naquele barzinho ridículo em um bairro classe média. Simplesmente nojento, não fosse por algumas músicas que quase o animaram, e que chamaram sua atenção a ponto dele ter perguntado de quem eram. O barman, meio sem jeito, disse que eram da sua antiga banda. Júnior não quis dizer mais nada, para não encher demais a bola do cara, mas pensou consigo: Benditos Bamboleiros.
Samuel estava quase completamente sem forças quando entrou no elevador do seu prédio no final da noite. Queria ter conseguido uma senha para assistir ao filme que estreava aquela noite no streaming e do qual ele tinha participado, como instrumentista, em algumas músicas da trilha. Fazia tempo. Nem pagou tão bem quanto se poderia esperar, ainda mais considerando a pressão e a quantidade de trabalho. Um vizinho entrou com ele no elevador, o mesmo militante com quem ele já tinha trocado algumas ideias, por afinidades políticas, e que ao longo daqueles anos sempre perguntava sobre sua carreira artística, sem nunca ter tido tempo ou disposição para prestar atenção nela de verdade. Nem foi diferente naquela noite, a pergunta simpática pelo que ele estava fazendo, e então, em vez do filme, ele preferiu contar sobre a Negros Fatos e a proposta da banda de juntar música, performance e poesia, além do novo projeto que estava quase estreando, meio aos trancos e barrancos, graças a uma lei de emergência cultural. O vizinho fez uma cara de aprovação, disse que eles eram muito corajosos de estar fazendo isso em meio a tudo o que está aí e terminou dizendo que antigamente, sim, ele gostava de poesia. Antes de deixar o elevador, olhou para trás com um ar dramático e disse que agora não dava mais, que não tinha mais como, que não existe poesia possível diante da barbárie. Quando a porta do elevador se fechou, a mente de Samuel estava completamente vazia.
Júnior quase voltou para casa quando chegou na casa da namorada e descobriu que ela estava menstruada. Mas ela tinha acabado de pedir comida japonesa para os dois e ele achou que de repente ainda podia ganhar alguma coisa a mais com isso. Mas resistiu a assistir ao filme brasileiro que ela escolheu e que estava estreando no streaming, achando que, brasileiro, só podia ser uma bomba. No fim, acabou que nem foi tanto. Na verdade, ele até se sentiu tocado em algumas cenas, embora não soubesse absolutamente explicar por que. Talvez fosse a trilha sonora. Seu humor até que estava melhor no fim do filme, mas quando a namorada se recusou a um contato mais íntimo, saiu batendo a porta e disse que ia mandar o dinheiro da comida japonesa. Quando chegou em casa, estava com muita vontade de quebrar alguma coisa, mas em vez disso, entrou na internet tentando se distrair um pouco. Entre bons memes, notícias de futebol e mulheres com pouca roupa, sabe Deus por que o algoritmo mostrou a ele a publicação de um tal de Samuel pedindo mais verbas para o setor cultural. Aquilo foi demais para ele. Sem pestanejar, deixou sua opinião nos comentários:
"Acabou a mamata. Sem mi-mi-mi. Vai trabalhar, vagabundo."
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