Naqueles setenta e poucos anos, o que ele mais se lembrava era de um mundo covarde demais pra olhá-lo nos olhos. Sem muita escolha, aceitou o caminho fácil, abandonou a si mesmo em troca de "ser alguém", e agora que sentia as últimas gotas de vida escorrendo, percebia também a sede acumulada.
Rabiscava, desajeitado, outro desenho no papel, tentando resgatar as formas de memória, e a firmeza na mão, e a vista, e um talento que já nem sabia se algum dia teve de verdade, quando Marta veio lhe perguntar se a menina poderia passar a noite ali com eles.
E contou a história de mais uma menina enganada por mais um homem sem escrúpulos, mais um aborto sendo feito, e que ela não poderia voltar pra casa, mais uma casa onde imperava um pai com seu falso moralismo e condenações generalizadas, especialmente contra as mulheres, então perguntou se eles poderiam acolhê-la, só por aquela noite, e João falou sim, claro.
Triste, silencioso foi o início daquela noite, e João se lembrava de tantas conversas tidas com Marta em que ela dizia, contra a ideia de que a humanidade fracassou, que quem havia fracassado mesmo eram os homens, mas que afinal, eles eram fisicamente mais fortes e insistiam em manter o fato no topo das relevâncias.
"Ela tem razão", João pensava, "ela tem toda a razão", tendo sido uma das pouquíssimas pessoas capazes de vê-lo, em mais de setenta anos, mais uma entre uma maioria absoluta de mulheres.
E agora, a menina estava ali, a casa ficou ainda mais silenciosa. Ele não a viu, apenas percebia sua presença como uma densa camada de melancolia preenchendo todos os cantos. As mulheres falavam baixo e em tom grave. Andavam devagar e cabisbaixas.
João reencontrou o desenho sobre sua mesa um pouco antes de dormir. Marta veio lhe dizer que a menina estava descansando, que ela iria embora assim que amanhecesse e que eles não precisavam se preocupar, mas dizia isso com a voz meio embargada. Parou a meio caminho de sair, olhando em direção ao nada, e disse triste e devagar "Vitória. Ela se chama Vitória. Quinze anos."
Quando a porta se fechou, ele voltou a olhar pro seu desenho, indiscutivelmente premonitório, uma escultura de mais de dois mil anos, sem cabeça e de asas abertas, com aquele mesmo nome. O que não queria dizer absolutamente nada. João nem saberia explicar por que chorava.
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