Era uma tarde luminosa de outono, agradável, quente, e eu estava cego de dor.
Lembranças d'água em meio às lágrimas, de vez em quando a correnteza, de vez em quando um lago sob o céu estrelado.
Acho que eu mesmo não gostava muito do Bernardo quando nos conhecemos na faculdade de Artes, até que veio um trabalho de aula que nos colocou só os dois em uma cena muito delicada, em que os nossos personagens se beijavam.
Estávamos seguros o suficiente de nossa sexualidade para aceitar beijar outro homem em cena sem nos abalar, caso algum dia precisássemos fazer isso em nossas carreiras de atores profissionais. Mas aquele era apenas um trabalho de aula, e concordamos que seria até mais interessante, como estudo, se apenas encontrássemos uma forma abstrata de representar o beijo.
Em meio às sugestões mais criativas e improváveis, lembro-me do Bernardo perguntando repetidas vezes:
- Mas será que alguém vai entender?
Sorri com essa lembrança, a cara coberta de choro.
Bernardo morreu de Covid antes da nossa vez de sermos vacinados. Confesso que, na época, uma grande parte minha culpou seu pai, com toda a imensidão da raiva que eu sentia, e como se isso pudesse mudar os fatos. A morte sem despedida, e em minha imaginação o pai dele não chorava, por trás de uns óculos escuros muito caros e pronto para votar de novo em uma obscena política do descaso.
Quando encontramos uma forma de representar o beijo, fomos experimentá-la na prática, e lá estávamos nós meio enlaçados, os rostos muito próximos um do outro, no exato instante em que seu pai entrou na sala.
Foi um longo discurso enfurecido sobre ele não ter criado uma bichona, que já chegava a opção ridícula pelo teatro, que o Bernardo era um vagabundo egoísta e ingrato (e aí começaram longas narrativas de episódios do século passado que "provavam" que o filho era uma nulidade, ou, então, uma aberração monstruosa), e tome mais monólogo sobre o “trabalho de verdade”, Deus, respeito e uma matemática estranha em que um mais um não podem ser dois se um dos "um" é igual ao outro — uns trinta minutos, no mínimo, de fala sem escuta e nem um pingo de vestígio de que algum dia ele tenha enxergado seu filho.
Mas eu, lembrando disso, só o que podia fazer com minha raiva era chorar outro tanto, mais uma vez calado.
De vez em quando eram tempestades, de vez em quando, os mares.
E eu perguntava em voz alta a um Bernardo que nunca mais estaria ali, meu amigo, e se tivéssemos nos beijado, será que assim teriam entendido?
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