sábado, 16 de julho de 2022

Acordou uns cinco minutos mais tarde que o habitual e já se levantou com a sensação de que o dia inteiro daria errado. Antes de sair, apressado, sob o olhar sempre atento e silencioso de Anis, ainda ouviu Margarete dizer a Patrícia, talvez pela centésima vez desde que chegou ali, duas semanas antes: "Ele vai cair. Você vai ver. É só questão de tempo."

Chegou à oficina alguns segundos antes de se completar um minuto de atraso, o que deixou o patrão ainda mais enfurecido do que se ele tivesse se atrasado um minuto inteiro. Afinal, os descontos de pagamento por atraso eram baseados em minutos, não em segundos. O fato representou um aumento considerável de trabalho naquela manhã, incluindo tarefas que não eram sua função, e outras absolutamente desnecessárias, surgidas de um puro exercício de poder e sarcasmo do chefe mau humorado.

No almoço, ao menos, podia contar com a compreensão de Lan, dono de um restaurante suspeito na esquina e que sempre lhe concedia descontos na comida em troca de uma ajuda na limpeza, na cozinha ou fazendo alguma entrega. O que acabava reduzindo ainda mais o tempo já reduzido de almoço, mas era o que dava para fazer. "Vamos acabar com a injustiça social", dizia Lan, trazendo-lhe mais pratos sujos. "Você vai ver. Vamos colocar essa sociedade nos eixos."

De volta à oficina, à tarde, o chefe parecia um pouco menos irritado. Parou para humilhá-lo apenas três vezes, uma delas por causa dos sapatos muito gastos, outra, porque ele tinha "um nome de pobre", simplesmente, e outra porque… Já nem se lembrava. Não era importante. O chefe era um completo babaca, mas sem o qual ele continuaria como antes, morando na rua, mendigando trocados.

No caminho de casa, encontrou-se outra vez com Lan, que veio pedir que o amigo por favor levasse aquele saco de rejeitos fedorentos até uma caçamba na rua debaixo, para ele não ter que passar a noite com aquilo empesteando o ar já bastante comprometido em frente ao restaurante. E como era de costume, foi atencioso, perguntou como tinha sido o trabalho e teceu comentários maldosos sobre o patrão do outro, despedindo-se com a corriqueira afirmação de que o reinado do capitalismo estava prestes a acabar, e que ia levar junto para o esgoto da História todos aqueles ratos nojentos.

Quando chegou em casa, encontrou as mulheres e a menina se ajeitando para ver um filme, e então Patrícia convidou-o para acompanhá-las. Margarete não fez o menor esforço para disfarçar sua contrariedade, mas ele aceitou mesmo assim, e até porque, se dependesse de Margarete, ele ainda estaria morando na rua. Patrícia, por outro lado, chegava a ser gentil com ele, às vezes, mais até do que ele já tinha visto qualquer uma delas ser com a menina Anis — que, aliás, ele nunca entendeu quem era ou como foi parar ali.

Dormiu um pouco antes da metade do filme. Arrastou-se para o quarto ouvindo Margarete reclamar de alguma coisa e caiu outra vez no sono assim que se deitou. Teve um sonho tumultuado, carregado de sensações densas e incômodas, uma série de situações em que ele era esmagado, ferido, apedrejado, morto, destroçado, perseguido, incinerado, e talvez mais umas quatro ou cinco formas de agressão e anulação. Um pouco antes de amanhecer, acordou a tempo de ver da janela uma estrela colorida e brilhante descer do céu e pousar em algum ponto ali perto. "Vai ficar tudo bem, agora", pensou, sem saber de onde vinha aquela certeza. Quando finalmente acordou para o trabalho, um pouco depois, sequer sabia se aquilo havia sido um sonho ou realidade.

Desta vez, estava realmente atrasado. Profundamente descansado, sim, com os ânimos transformados, mas terrivelmente atrasado. Saiu sem correr muito, até parou para dizer bom dia às mulheres e a Anis, a quem se permitiu ainda dirigir um sorriso e algumas palavras de carinho. Aquilo enfureceu Margarete de um jeito que ele nunca tinha visto, e enquanto saía, desta vez, ouviu-a dizendo "Eu disse que ele ia cair, olha aí, todo amiguinho", e mais uma série de considerações amargas e raivosas que ele não conseguiu escutar.

E então, quando chegou à oficina, encontrou o chefe esperando com um largo sorriso de crueldade e sem mal conseguir conter o anúncio de sua demissão. Falou que tinha feito mudanças por causa dele, que, a partir daquele dia, os descontos por atraso seriam por segundos e não minutos, mas que afinal, a regra nem chegaria a ser aplicada a ele, veja só, que privilégio. Aproveitou para mandar outras palavras de desprezo antes que ele saísse definitivamente pela porta, estranhamente leve e despreocupado, como se todos aqueles desaforos estivessem sendo dirigidos a outra pessoa. E foi adiante sem olhar para trás.

Na esquina, parou para contar a Lan o que havia acontecido, e ele contou também que vinha sendo pressionado pelo dono do ponto, que o aluguel tinha subido e que ele não poderia mais ajudá-lo com aqueles precinhos camaradas de sempre. A notícia não chegou a surpreendê-lo, e só de brincadeira, perguntou: "E a revolução começa quando?", ao que o outro fechou a cara e respondeu secamente: "Primeiro, eu tenho que arrumar essa bagunça".

Por fim, então, quando voltou para casa, encontrou todas as suas coisas do lado de fora da porta. Ainda bateu algumas vezes, chamou pelas mulheres, sabendo que elas estavam ali, mas nenhuma se deu ao trabalho de lhe responder. A única saída era resignar-se ao seu destino. Juntou seus pertences, tão poucos, e caminhou outra vez em direção à rua. Como um filho pródigo.

Na calçada, parou uma última vez com o olhar distante, a sensação bem conhecida de um peito despedaçado. Se formulasse algum raciocínio, provavelmente seria uma pergunta, como, por que, para onde agora, mas era uma interrogação generalizada, apenas, enquanto ele se movia sem nem mesmo se dar conta.

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